Uma série para assistir de joelhos

Paulo Maia

Disponível na HBO Max, a série “Mare of Easttown”, 2021, nos agracia com um grande recorte da vida que, independentemente dos acontecimentos e da objetividade dos fatos retratados na ficção, nos toca fundo na alma quando pelo prisma da subjetividade nosso inconsciente se manifesta alertando-nos de que, indubitavelmente, nosso presente é definido por nossos traumas e nossas tragédias.

O enredo da série é anunciando como a história de “uma detetive de uma pequena cidade que investiga um assassinato local enquanto sua vida desmorona”. Banal demais, mesmo para uma descrição superficial.

Uma detetive de uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos lida com o desaparecimento de uma adolescente já há um ano, sofrendo com a pressão da comunidade – e do Xerife – que quer respostas e, ao mesmo tempo, tem uma vida toda desregrada e atribulada, vivendo o luto de um filho que se suicidou, tendo a mãe como hóspede e com um relacionamento conturbado, além de ainda ser vizinha do seu ex-marido que escondeu ter ficado noivo de última hora. Vive também no mesmo teto com a filha e o neto – do filho morto – que parece apresentar alguns distúrbios psicológicos e emocionais que o pai um dia apresentara. Isso para não falar na batalha judicial contra a mãe da criança.

HBO | Divulgação

As primeiras cenas já mostram uma mulher um pouco amarga, quase que se arrastando para poder cumprir com seu trabalho e uma expressão de quem está sempre com raiva de alguém. Então, ocorre um assassinato de uma outra adolescente e a trama ganha corpo e na medida em que a história avança, vamos conhecendo a vida, a rotina e a natureza dos personagens.

É nesta viagem que a séria faz valer nossa audiência. Conhecer o que aconteceu com a garota desaparecida e saber a identidade do assassino viram, automaticamente, prioridades de segunda ordem. O que nos prende desde os primeiros minutos é o universo da intrincada psicologia e vida dos personagens que, ao se desvelar em nossa frente, constrói um mosaico da natureza humana no enfrentamento do dia a dia, fazendo-nos cúmplices de suas angústias e tragédias.

Antes de mais nada, deixo minha contundente recomendação para assistir a série o quanto antes! E rasgo meus elogios para a atuação de Kate Winslet como a detetive Mare Sheehan.  É de um magnetismo que nos tira a atenção de qualquer coisa que estamos fazendo ou pensando na hora! Ela fala conosco em cada respiração e em cada olhar.

Na medida em que vamos conhecendo os personagens no seu cotidiano com seus segredos, vamos nos ambientando com sutilezas que variam entre uma atitude que pode ser tanto mesquinha quanto generosa, ilustrando bem como somos diante da confusão que é para distinguirmos o que é certo e errado. Sinais mudam de sentido dependendo do ponto de vista da situação. O que moralmente não poderia ser feito, torna-se totalmente aceito em um determinado viés, mas que ao mesmo tempo, ao mudarmos o ângulo, de novo, sentimos o pudor da desaprovação com a inquieta pergunta que bate no fundo em nosso ser: o que faria eu nesta situação?

HBO | Divulgação

Uma das grandes forças do enredo está em distribuir pesos semelhantes para a dor de cada personagem com sua história pessoal, tendo ou não ligação direta com o caso do desaparecimento da garota ou do assassinato da outra. O microcosmo de uma cidade pequena no interior americano ajuda a entender que todos nós temos relação com o que se passa ao largo de nossas vidas: esperamos algo de alguém que, da mesma forma, espera algo de nós. A experiência da relação com pessoas do nosso dia a dia só é possível na troca subjetiva de nossos anseios e objetivos, mesmo sabendo que, estas mesmas pessoas, podem ser em algum momento, obstáculos na realização dos nossos desejos.

Às vezes a vida pode apresentar oportunidades para redenção, mas nem sempre conseguimos enxergar direito o caminho ou se estamos preparados para ela. “Mare of Easttown” mostra que seus personagens somos todos nós cujos afetos abrigam sentimentos de toda ordem, mas os mais doloridos são aqueles que justamente nos custaram muito caro e, portanto, não podem – ou jamais devem – simplesmente serem sublimados com qualquer terapia ou mensagem de esperança. No fim, só a misericórdia se apresenta como única saída redentora possível do beco de onde nos metemos.

HBO | Divulgação

Uma fala extremamente significativa vem da personagem Mare quando diz ao seu colega após este confessar ter sido uma fraude no passado, apenas por ter querido fazer algo grandioso na vida: “Fazer coisas grandiosas não é lá essas coisas. Depois as pessoas vão esperar isso de você o tempo todo. O que elas não percebem é que você é tão ferrado quanto elas”. A vontade de se conquistar coisas grandes em meio ao caos que vivemos, pode às vezes obliterar nossa capacidade de enxergar danos que jamais conseguiremos tratar em nós mesmos ou naqueles para os quais damos nossos afetos.

Não se preocupe em se acomodar no sofá. Esta é uma série que se tem de assistir de joelhos.

Paulo Maia é publicitário, um pensador livre e morador do Morumbi que mantém sua curiosidade sempre aguçada

Imagem destacada da Publicação

HBO | Divulgação

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