Abandono afetivo inverso: o momento em que filhos abandonam os pais na velhice
É possível imaginar o impacto causado numa pessoa velha que é abandonada?
Por Blenda Oliveira
O envelhecimento da população não é mais novidade e foi comprovado pelos dados do IBGE e do Ministério da Saúde. Em 2030, o Brasil terá a quinta população mais idosa do mundo, com mais de 43 milhões de pessoas a partir dos 60 anos. A longevidade traz alguns debates, afinal envolve saúde, trabalho até os cuidados que os filhos precisam ter com os pais idosos. A verdade é que falar de envelhecimento exige coragem porque é um tema que diz muito sobre nossa sociedade e cultura, onde tudo precisa ser rápido, funcional e produtivo. A velhice é assim?
A velhice certamente traz diversos desafios e é impossível abordar em um único artigo todas as questões que venho estudando nos últimos anos que envolvem a longevidade. Mas um aspecto está bem presente na vida dos brasileiros e isso acende um alerta para essa projeção de aumento no número de idosos: o abandono afetivo inverso, que é quando os filhos abandonam os pais (ou até outros familiares a partir dos 60 anos).
Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, o número de denúncias de abandono de idosos cresceu 855% em 2023. No primeiro semestre do ano passado, foram quase 20 mil registros de abandono. No mesmo período de 2022, foram 2.092 casos. De acordo com o órgão, esse foi o maior aumento registrado por eles entre vários outros tipos de violação contra idosos, como negligência, violência psicológica e até violência física.
Estamos preparados para lidar com o envelhecimento se considerarmos que parte da violência, seja física ou não, começa em casa? O abandono inverso se entrelaça com a cultura ocidental, é parte do ritmo que adotamos como ideal. O abandono é falta de tempo e afeto, aliás ambos precisam caminhar juntos. Quem corre demais não sente o tempo, não tem experiência, não cria memória e, logo, não estimula o afeto, gerando um vazio.
Como psicóloga, também não posso ignorar que boa parte dos filhos precisam trabalhar, construíram suas famílias e estão vivendo suas vidas. Aliás, há quem diga que estamos numa espécie de geração sanduíche, onde parte da população entre 35 e 50 anos está tentando lidar com filhos e pais idosos ao mesmo tempo. Mas, ainda sim, há uma resposta que justifique um abandono afetivo e material?
Reitero, sei que o debate tem outros elementos, mas meu foco aqui é olhar para a relação desses filhos, e de familiares mais novos, com os mais velhos. Uma pesquisa realizada na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) mostrou que idosos que se sentem solitários possuem quatro vezes mais chance de ter depressão. Essa probabilidade dobra no caso de idosos que moram sozinhos.
Nem todos idosos que moram sozinhos são abandonados, mas se o impacto da solidão coloca em risco a saúde mental, além da própria saúde física, de um idoso. É possível imaginar o impacto causado numa pessoa velha que é abandonada?
O envelhecimento é invisível na sociedade atual, mas falar sobre o tema vai nos ajudar a trazer luz para esse assunto. A forma como tratamos as nossas limitações, a improdutividade, que acomete qualquer um de nós em diferentes graus ao longo da vida, e até a ineficiência, que também faz parte da nossa espécie humana, se revela justamente naqueles que estão mais velhos hoje, que são colocados de escanteio depois de uma certa idade.
Para além dessa conscientização sobre familiares idosos e da necessidade fundamental de acolhimento material e afetivo, precisamos também lembrar que há responsabilidade civil com base no Estatuto do Idoso e no Código Penal.
O envelhecimento é um assunto vasto, mas começar por esse ponto já nos mostra o tamanho do trabalho que vamos ter pela frente ao falar desse tema. Afinal, só não envelhece quem morre jovem.
Envelhecer, tanto quanto a morte, é um tabu ainda e temos um longo caminho a percorrer para conscientizar, para falarmos de um envelhecer que hoje é meu, mas amanhã será seu e de seus filhos.
Blenda Oliveira é doutora em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). É autora do livro Fazendo as pazes com a ansiedade, publicado pela Editora Nacional, que foi indicado ao Prêmio Jabuti em 2023. A especialista também palestra sobre saúde mental e autoconhecimento e vem se dedicando ao tema do envelhecimento.
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