A maleta, a trapezista e o gavião
Dolce Selfcare
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A maleta
Preste atenção: é o armário do lado esquerdo!”, disse ele abafado pelo ar quente do verão antecipado, seguido pela expectativa de ver-se defronte às suas riquezas.
“Abra a segunda gaveta do lado direito, onde estão minhas meias e pegue a maleta preta”. O modo era imperativo e afirmativo, contudo, o tom da voz era baixo e gentil. Nascido no Nordeste e crescido no Sudeste, mantinha com orgulho o tempo verbal característico da região, além do sotaque, quando trazia à memória as estórias burlescas dos tempos de menino em Fortaleza.
Por aqui, casou-se com a ruiva dos seus sonhos, firmou-se numa carreira de sucesso, teve 3 filhos, devorou livros, refestelou-se em jantares e pândegas e viajou meio mundo. Ilustre jogador de gamão ensinou aos netos a arte da estratégia e intuição. E venceu cada um deles.
Podia-se dizer que a vida lhe sorriu e vice-versa.
A maleta retirada da gaveta de meias foi aberta e de lá saíram uma caderneta de notas, duas canetas distintas, chaves pequenas, um estojo de couro para cutelaria e uma seleção chinesa de reloginhos para dedo.
“Eu já te dei um reloginho? São lindos!”
E são: dourados (seus prediletos), prateados, com fundos de madrepérolas, azuis, verdes, com diminutos ponteiros, como fios delicados que parecem desafiar a gravidade, movendo-se com uma precisão suíça. O Império do Meio surpreende!
Ele já havia me presenteado com vários e, na verdade, era eu quem os comprava. Mas ninguém saía de lá sem receber uma pequena dádiva dos seus mais estimados tesouros. Ele colocou o escolhido da semana no dedo, soltou um sorriso satisfeito com a decisão certeira e me olhou com ternura por um instante.
A idade subtrai os excessos, sabiamente.
“Agora devolva a maleta no armário do lado esquerdo, na segunda gaveta do lado direito. A de meias!”
A trapezista
Desafiando às leis da física, deslizando em pleno ar, graciosa, encantando a todos, boquiabertos, sob as acrobacias cada vez mais impressionantes, rodopiando, rodopiando, até que…
Uma torção abdominal, um movimento desastrado e um grunhido agudo.
Estava feita a miséria que virou notícia dos jornais mundiais, inclusive nas mãos do meu pai.
“Você conhece a estória da trapezista que estava voando lá no alto e teve uma desinteria?”, indagava ele, já iniciando uma gargalhada que abria o bigode entre as bochechas.
Como dizem, a “vida é uma piada” e ele era engenhoso, o doutor! Se tinha alguém que sabia apreciar uma boa piada com doses de sarcasmo, era ele. E a estória da trapezista que enlameou a plateia enojada rendeu anos a fio.
Eram quase cinco horas e o velório que ele não desejava estava próximo. Abri a porta que leva ao deck e dei de cara com um passarinho minúsculo, quase ao meu lado. A criatura olhava para mim, imóvel.
Deixei minhas tristezas de lado e comecei a me preocupar, acreditando que a coisinha estava com uma asa quebrada. Me aproximei e nada, o penacho não queria saber de se mexer. Procurei por ajuda e quando se aproximaram, ele voou, e ainda abandonou um belo monte de excremento na minha janela.
Não satisfeito, foi planando e soltando mais fezes durante toda rota para finalmente pousar num galho do meu pinheiro, avançando com o espetáculo e desfazendo-se, aliviado, do restante.
Talvez naquele dia de órfã paterna eu quisesse acreditar que o pássaro debochado fosse um emissário do meu pai trazendo mais uma caçoada. Foi uma analogia reconfortante, como ele gostaria.
A vida é uma piada curta. E não necessariamente “limpa”.
O gavião
Quais são as probabilidades de alguém se deparar com um gavião pronto para atacar um tucano?
O cenário era o mesmo e a data, coincidentemente desafortunada. Há sete dias não se escutava uma narração sequer sobre as trincheiras da primeira guerra mundial ou de quando os fenícios navegaram até não sei onde.
O deck sempre foi meu santuário para livrar-me de chatices cotidianas e agora, mais do que nunca, no sétimo dia de silêncio imposto, o refúgio era redentor.
Mas não, novamente, me vi em uma situação insólita.
À princípio, fiquei contemplando a beleza de ambas as aves. O gavião, com olhos de ruína no muro da vizinha, mirando fixamente sua presa e aparentemente sem se incomodar com minha intromissão e o tucano, colorido e pequeno, pousado no mesmo pinheiro do passarinho com diarreia.
Logo que o tucano me avistou, voou próximo de mim, em sinal de desespero.
Desespero, assim havia sido o meu dia e noites insones, à procura de respostas, chorando e sorrindo, perdendo-me entre lembranças e fotos que não eram datadas. Ainda havia o nauseante peso da culpa de se fazer algo que não tinha salvação.
Abri os braços e corri em direção ao gavião fazendo um ruido ensurdecedor como quem está chamando por um gato.
“Tssss!”
A ave de rapina nunca deve ter visto um ser tão assustadoramente ridículo e bateu em retirada.
Ficamos eu e o bicudo por mais um tempo na serenidade das certezas momentâneas. Ele foi embora com vida e eu…vivi mais um dia.
Para meu pai.
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