Muitas crianças são muito jovens para entender completamente as implicações de ter suas fotos e detalhes pessoais compartilhados publicamente
Por Fernanda Araújo Couto e Melo Nogueira e Walter Calza Neto
O fenômeno do “shareting”, uma fusão das palavras “sharing” (compartilhar) e “parenting” (paternidade), refere-se à prática de pais que compartilham muitos detalhes pessoais de seus filhos em redes sociais. Nossa intenção é refletir sobre as implicações psicossociais e legais do “shareting”, analisando tantos os aspectos legais quanto comportamentais dos pais.
No atual cenário digital, o “shareting” carrega consigo riscos significativos não só para a privacidade, mas também para a segurança e o bem-estar emocional das crianças. Frequentemente subestimadas pelos responsáveis, as consequências da superexposição nas redes sociais podem abrir portas para perigos graves, como abuso de dados e assédio online.
A potencial violação da privacidade e da segurança das crianças é um dos aspectos mais preocupantes do “shareting”. Ao compartilhar informações como localização, atividades escolares e detalhes da rotina diária, os pais inadvertidamente tornam seus filhos alvos potenciais para criminosos. Esses dados, uma vez online, podem ser usados para facilitar crimes que vão desde assédio e bullying cibernético até sequestros e roubos de identidade. Além disso, a exposição de informações pessoais das crianças pode atrair predadores online, que utilizam esses dados para construir uma falsa sensação de familiaridade e confiança com suas vítimas, um fenômeno conhecido como “grooming“.
O impacto psicológico do “shareting” é profundo e preocupante. Crianças cujas vidas são regularmente expostas nas redes sociais muitas vezes enfrentam pressões para atender às expectativas de uma audiência online, o que pode ser incrivelmente nocivo durante os anos formativos de desenvolvimento de sua identidade e autoestima. A necessidade de aprovação e a constante avaliação social podem levar a distúrbios de ansiedade e depressão. A superexposição nas redes sociais pode levar as crianças a desenvolverem uma percepção distorcida da realidade, onde o valor pessoal é indevidamente ligado à popularidade online e às reações em publicações.
Muitas crianças são muito jovens para entender completamente as implicações de ter suas fotos e detalhes pessoais compartilhados publicamente. A divulgação não autorizada ou sequer compartilhada com as crianças e adolescentes pode levar a sentimentos de invasão de privacidade e desrespeito por suas próprias histórias e experiências. Além disso, ao não permitir que as crianças tenham voz ativa nessa decisão, os pais podem inadvertidamente minar a capacidade de seus filhos de estabelecer limites pessoais, o que é crucial para o desenvolvimento de um senso saudável de autonomia.
Os riscos do “shareting” não se limitam apenas às consequências imediatas. A longo prazo, as informações compartilhadas podem permanecer acessíveis indefinidamente na internet, o que pode afetar as futuras oportunidades acadêmicas e profissionais das crianças. À medida que crescem, esses jovens podem encontrar registros de sua infância expostos em uma simples busca na internet por futuros colegas ou empregadores, o que pode levar a julgamentos e estigmatizações baseadas em informações que nunca optaram por compartilhar.
É essencial que os pais considerem seriamente esses riscos antes de decidirem compartilhar detalhes da vida de seus filhos nas redes sociais. Além de implementar práticas de compartilhamento mais seguras, é crucial que haja uma reflexão sobre a importância de proteger a privacidade e o bem-estar das crianças em um mundo cada vez mais digital. Com o avanço da tecnologia e a ubiquidade das redes sociais, proteger os mais vulneráveis deve ser uma prioridade tanto para os pais quanto para os formuladores de políticas.
A legislação brasileira atual, embora abrangente em muitos aspectos relacionados à proteção digital e direitos infantis, apresenta lacunas significativas no que tange à regulamentação específica do “shareting”. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promulgado pela Lei No. 8.069/1990, oferece uma proteção robusta, incluindo salvaguardas contra exploração, abuso e invasões de privacidade. No entanto, mesmo com tais leis, há uma necessidade de maior conscientização e educação entre os pais sobre as implicações de suas atividades online. Campanhas de educação digital e recursos educacionais poderiam ajudar os pais a navegar no ambiente online de maneira segura e responsável, protegendo a privacidade e a integridade de seus filhos.
A ausência de diretrizes específicas para o “shareting” permite interpretações variadas da lei, dificultando a proteção efetiva das crianças. Exemplos internacionais, como a Lei de Proteção à Privacidade Online das Crianças (COPPA) nos Estados Unidos e o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) na Europa, mostram que legislações específicas podem oferecer frameworks mais claros e seguros para a proteção infantil online.
A atualização da legislação também deveria contemplar a educação digital e a conscientização de pais e responsáveis, enfatizando a importância de proteger a identidade digital das crianças e as consequências de não o fazer. Tais iniciativas ajudariam a construir um ambiente digital mais seguro para as crianças e reduziriam os riscos associados ao “shareting” , garantindo que o desenvolvimento tecnológico e as práticas sociais evoluam de maneira responsável e protegida.
E diante da ausência de regulamentação específica, é fundamental que os pais reconheçam os perigos associados ao “shareting”, uma prática que pode expor seus filhos a riscos significativos no ambiente digital. A proteção das crianças começa com a adoção de práticas digitais responsáveis, que incluem o gerenciamento de configurações de privacidade, o fomento do consentimento consciente e a educação digital, através da qual as famílias devem se empenhar em aprender sobre os perigos do compartilhamento online e as melhores práticas para manter uma presença digital segura. Isso abrange desde o entendimento das configurações de privacidade até o reconhecimento de potenciais ameaças como cyberbullying e exploração de dados.
Além disso, ajustar as configurações de privacidade em todas as plataformas digitais é uma ação necessária para controlar quem pode acessar as informações pessoais e as postagens. Essas configurações são essenciais para minimizar os riscos de exposição indevida e devem ser revisadas regularmente para garantir que estejam alinhadas com as melhores práticas de segurança online.
A conscientização e inclusão das crianças no processo de divulgação das suas informações, em especial em redes sociais, é recomendável. Embora não sejam tidas como civilmente capazes e aptas a darem um consentimento legal, as crianças devem ter voz ativa nas decisões sobre o que pode ser compartilhado sobre elas online, de forma a proteger a privacidade e o direito à imagem das crianças, mas também educar e propiciar a estes seres humanos em formação uma importante lição sobre respeito à autonomia e aos direitos individuais.
Ao refletir sobre a prática do “shareting”, é importante que os pais ponderem cuidadosamente as consequências de expor a vida de seus filhos online. O impulso para compartilhar momentos especiais deve ser equilibrado com a responsabilidade de proteger a privacidade e a segurança das crianças. Cada postagem pode ter um impacto duradouro na percepção que outros têm sobre uma criança e, mais crucialmente, na percepção que a criança tem de si mesma.
Assim, sob a premissa de que os pais são os primeiros defensores de seus filhos e têm o dever de serem modelos de comportamento responsável online, o exemplo que eles estabelecem pode ensinar os filhos a valorizar sua própria privacidade e a dos outros. Portanto, é essencial que as decisões sobre o que compartilhar online sejam tomadas com consideração cuidadosa, respeitando sempre os desejos e o bem-estar das crianças.
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