Ela chegou um pouco antes das cinco da tarde e já sabia que o trem atrasaria pelo menos por mais meia hora conforme dizia o aviso na entrada da estação. Estava tudo bem, não havia porque se preocupar já que carregava consigo suas cartas para reler durante a espera. Nada lhe daria mais prazer. Espera essa que já se estendia a quase dois anos! Não era o calendário que lhe dava a medida da distância no tempo, mas as lembranças dos momentos em que estiveram juntos e que só não se dissipavam mais na memória porque a caligrafia suave impressa nas folhas que tinha em mãos era uma prova de que aqueles mesmos dedos que a haviam feito ora deslizara por seu corpo cujas sensações ainda se faziam sentir.
Dirigiu-se ao toalete no grande saguão para se refrescar, dar mais uma olhada na maquiagem e se olhar no espelho, esse nosso confidente em momentos de grande ansiedade. Queria ter certeza de estar bem para o reencontro com um grande amor. Ele partira em uma convocação para uma eminente guerra, e desde então, apenas cartas mantinham sonhos e realizações futuras no horizonte.
Os dois jovens andavam entusiasmados com um mundo em ebulição e que se modernizava na vida urbana, enchendo-lhes a imaginação de planos e sonhos e o coração de paixão que só um grande amor poderia acomodar para uma vida imensa que queriam construir juntos.
Como é natural na adolescência, arroubos de um mundo de promessas de eterna paixão e fidelidade mantém acesa uma chama que consome dias ensolarados e dão a eles a certeza de que podem fazer o que quiserem e que somente seu amor importa. Até que uma guerra entra em suas vidas sem ser convidada e um futuro é adiado. A única coisa que pode dar significado àquilo tudo é fazer da tragédia algo que possa ser vencido com amor e esperança, e então, assim fora ele levando uma foto do amor de sua vida para lhe servir de conforto, lembrar-lhe porque foi e, principalmente, porque precisa voltar.
Ela não tinha certeza se o retorno dele seria definitivo, mas não importava, pois, aquele momento estava cheio de esperança na retomada de suas vidas com mais força e paixão. Somente suas orações conheciam o quanto tudo aquilo significava. Já passava das cinco e a estação recebia cada vez mais pessoas, algumas prontas para partir, outras, como ela, para receber.
Coração apertado, mãos que suam dentro de luvas. Chapéu distinto para uma bela jovem que se mostra comprometida. Olhos atentos, mas visões compartilhadas com a imaginação de quais primeiras palavras virão depois do beijo do reencontro, claro. Observa outras pessoas ansiosas também. Famílias inteiras vieram para receber seus filhos enquanto cenas de diversas pessoas ensaiando despedidas de outros que partem de visita ou para novas jornadas da vida. Uma estação de trem traz um mosaico de figuras distintas e um recorte de vidas que se movem e se desenrolam de um lugar para outro com esperanças e sonhos na bagagem.
O sol da tarde se prepara para se pôr quando a fumaça ao horizonte anuncia a chegada tão esperada do trem. Movimentação intensa na plataforma enquanto cabeças se voltam para os que acenam ainda de dentro dos vagões. A fumaça agora do vapor que sai debaixo deles encobre as silhuetas e os abraços daqueles que se reencontram.
Ela ansiosa anda para um lado, olha do outro e procura pelo rosto que tem sonhado todo esse tempo. Caminha pela plataforma olhando para todos os rostos possíveis, prestando atenção naqueles que descem. Seu coração bate mais forte, mas há uma apreensão muito grande em seu peito. Onde ele estará? Decide voltar o caminho e agora centra o olhar para a plataforma e algumas trombadas com as pessoas não a incomoda ou a impede de seguir buscando. Arrisca chamar pelo seu nome em alta voz, mas há muito barulho. Segura a bolsa e sua sombrinha com força e agora se apressa para o saguão, mas não o vê. Sua alma se desespera e seu coração palpita e por um momento não acredita que possa tê-lo desencontrado.
A estação começa a se esvaziar e o apito do trem anuncia sua partida. Ela corre para a plataforma agora apenas com os funcionários da estação andando de um lado para o outro. Ela volta ao saguão que já se encontra praticamente vazio. Suas mãos tremem quando leva o lenço para seu rosto. O que acontecera? Onde ele estaria? Porque não veio? Para onde vou? O que farei agora? Sentou-se no banco no lado de fora da estação, baixou sua cabeça nas pernas e começou a chorar.
A mulher tem uma certa dificuldade em abrir os olhos. Um certo entorpecer não a deixa ter uma noção do que está a seu redor. “Ela tem tido dias bons e dias ruins”. São palavras que escuta de uma pessoa de jaleco branco ao pé da cama dizendo para um casal que está com ele. “Na maior parte do tempo está sorrindo e conversando com os outros internos. Fez várias amizades… mas há momentos de surtos, perda de memória e é quando se desespera e chora incontrolavelmente. Lamentamos muito tudo isso, mas procuramos dar a ela sempre o nosso melhor”.
O casal em questão, na verdade, são irmãos que visitam a mãe na casa de repouso que haviam conseguido para ela. Vão juntos sempre que podem, pelo menos uma vez ao mês nos dois últimos anos. Buscaram o melhor lugar para acomoda-la desde que começara a perder a memória e precisava cada vez mais de cuidados médicos por conta de sua condição. Às vezes ela levava algum tempo para reconhecê-los. Como naquele momento.
Passada a dificuldade em abrir os olhos, a mulher olhou ao redor, deu um suspiro fundo e sorriu na direção dos filhos, dizendo que estava com muitas saudades, se dizendo preocupada com a saúde deles. Recebeu o beijo deles e depois de três netos que também estavam lá. Conseguiu se sentar na cama e recebeu o carinho da menina mais nova em seu colo.
A visita correu bem e eventualmente perguntava sobre pessoas que ninguém ali conhecia ou como estava o tempo. Reclamou da música alta da sua vizinha de quarto e que não se preocupassem que logo ela estaria melhor e retornaria para casa. Ao final da visita, sorriu e abençoou os filhos pedindo que levassem seus agasalhos para não se esfriarem e recomendou que não voltassem tarde para não receber bronca do pai que estava para chegar do trabalho.
Ao lado, na cabeceira da cama, junto de uma edição da bíblia e um caderno antigo que parecia ser um diário, havia uma fotografia que ela pegou e ficou olhando no momento que seus filhos saiam. Deu um sorriso largo, um suspiro fundo e um beijo na foto. Nela, ela posava linda com aquele que viria ser seu marido e pai do casal que se despedia. Fora tirada por um fotógrafo que trabalhava na porta da estação de trem naquele mesmo dia em que tinha ido ao reencontro do amor de sua vida.
Paulo Maia é publicitário, um pensador livre e morador do Morumbi que mantém sua curiosidade sempre aguçada
Imagem destacada da Publicação:
Imagem por Steve Peet on Arcangel-images.com
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