Pense antes de falar.
Leia antes de pensar.
Fran Lebowitz
Uma espectadora pergunta à escritora e critica cultural, Fran Lebowitz “como se adquire senso de humor”, e ela responde “da mesma forma que se adquire altura”. Essa cena está na formidável série “Faz de conta que NY é uma cidade” (Pretend it’s a City, 2021 – Netflix), de Martin Scorsese, um documentário de entrevistas feito com ela, Fran, justamente sobre Nova York. Minha absoluta recomendação. Assista! Os episódios discorrem justamente sobre suas impressões da cidade em que sempre viveu e o melhor são suas observações, ou como se diz por aí, suas tiradas. Daquelas que nos faz rir e refletir.
E no que esta citação acima nos faz refletir? De que senso de humor, assim como diversas outas peculiaridades que temos como seres humanos, é algo inato. Você não adquire só porque quer. Da mesma forma que você não consegue aumentar ou diminuir sua altura, não é possível adquirir certas coisas. É uma daquelas coisas que podemos chamar de deterministas. Somos jogados no mundo! Não escolhemos nascer, onde nascer, nosso corpo, nossos pais ou nossa herança genética.
Faça uma viagem mental, cara leitora e caro leitor, sobre o que você não consegue adquirir, ou colocando de forma melhor, não consegue desejar e terá que, inevitavelmente concluir que você não é tão livre assim, como a ideia liberal do individualismo tem nos apresentado neste mundo contemporâneo. Não, não se trata de entrar no mundo das ideologias! O debate sobre isto anda muito raso e risível e entrar nestas questões onde a moda é polarizar e tomar partido para um lado ou o outro, além de ridículo (para gente crescida), nos leva sempre a um beco sem saída.
Voltando ao ponto, você verá que suas conclusões não têm nada de abstrato, muito pelo contrário. O convite reflexivo que lhe faço te levará a tais conclusões tão concretas quanto concreto é este dispositivo que se encontra à sua frente que lhe permite ler estas linhas.
O que diz o liberalismo, como ideologia, é que nossas escolhas não são deterministas nem aleatórias. São de livre-arbítrio. Mesmo que elas possam ser influenciadas por forças externas e eventos casuais, ainda assim somos nós que ao final, tomamos uma decisão de forma livre. Bom, sim, neste sentido, pelo menos em grande parte do mundo civilizado hoje, o ser humano é livre e responsável pelas suas escolhas. Mas a questão aqui, não é ser livre para fazer o que desejo. A questão é se sou livre para escolher esse desejo.
Desejar, veja, não é algo que escolho. É algo que surge. Segundo Yuval Harari (não me canso de citá-lo nesta coluna, sorry!), em seu Homo Deus – Uma breve história do amanhã, “Sinto um desejo específico brotar dentro de mim porque esse é o sentimento criado pelos processos bioquímicos em meu cérebro. Esses processos podem ser determinísticos ou aleatório, mas não livres” (pág. 288). Estes processos bioquímicos advêm de nossa ancestralidade, ou seja, está no processo evolutivo da espécie. Herdamos certas coisas.
Portanto, parece-me que não sou tão livre assim! Sou constrangido não apenas pela realidade externa, mas justamente pela minha própria estrutura interna. Percebo que não consigo escolher um desejo ou mesmo escolher não ter um determinado desejo. Por exemplo, não consigo desviar um pensamento que surge em minha cabeça. Aliás, quando me surge um pensamento, sequer escolhi por ele! Muitas vezes, não é meu desejo ter este ou aquele pensamento. E se desejo não mais pensar naquele assunto, não sou livre para evitar ou não pensar nele. Posso, eventualmente, esquecê-lo por um certo período, mas alguém ou algo externo pode disparar o gatilho e retorno a ele, de forma… indesejada. Entretanto, consigo escolher pensar em algo, mas mesmo desejando, por vezes quero (desejo) lembrar dele e não consigo. Desejo é uma coisa que te arrebata. Uma onda que te pega, na maioria das vezes, de surpresa. Mas não conseguimos reproduzir, livremente, o impulso do desejo.
Quer outro exemplo que custa muito caro a muita gente? O amor. Escolhemos – quero dizer, racionalmente – amar alguém? E quando somos invadidos pelo amor, conseguimos evitar? Apesar de toda a gritaria ridícula de que é possível implementar uma “ideologia de gênero”, mas está aí, mais uma coisa que não se escolhe. Nem gênero, nem sexualidade. E mais ainda! Você pode desejar sexualmente algumas pessoas, mas não todas as pessoas. Neste campo, a atração leva ao desejo. Seja de sexo diferente do seu ou do mesmo, não importa. Há pessoas com as quais você não é livre para desejar qualquer relacionamento. Simplesmente porque lhe falta, justamente… o desejo. E, brutalmente também, concluímos que não se chega ao desejo pela razão, ainda que ela possa, com seus mecanismo da lógica, nos apontar uma possibilidade de desejo.
O desejo surge sem que você queira e te leva a uma confusão muda e cega, distorcendo tudo o que está à sua volta e pondo seus tolos significados de cabeça para baixo. Pletora de romantismo para poetas e escritores.
Não nos esqueçamos também que a liberdade é um conceito, uma ideia. E neste sentido, você pode relativizar da forma como melhor se encaixa em sua visão de mundo. Para o filósofo francês, Jean-Paul Sartre, o que pode definir nossa situação como o lugar em que nascemos, onde estamos situados, o nosso próprio corpo, são facticidades que nos são impostas, nas quais deparamos com obstáculos e resistências que não foram criadas por nós e não podemos evitar, mas ainda assim, para ele, estamos condenados à liberdade. Não temos como não sermos livres.
Talvez, a ideia de liberdade seja a mais forte ilusão que alimentamos na condição de sermos conscientes de nossa existência. Estar no mundo e consciente disso é um sentimento muito poderoso e nos move na direção de criarmos nossos próprios mundos! Talvez seja por isso que lutamos pela liberdade diariamente e não nos importamos sobre aquilo que não controlamos, especialmente sobre nós. Justificamos nossa individualidade pela nossa insuficiência.
Enfim, o que a frase da Fran Lebowitz me lembra é que diante de certas coisas na vida, temos que dar um passo atrás e entender nossa posição, nossas limitações, nossa finitude, pois, de uma certa forma, ao reconhecê-las, acabamos por expandir nosso autoconhecimento e isso pode nos levar a uma experiência libertadora. Sim, às vezes a liberdade está em poder deixar para trás coisas que não desejamos mais ter ou ser.
Paulo Maia é publicitário, um pensador livre e morador do Morumbi que mantém sua curiosidade sempre aguçada
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Comentários
muito bom o texto,Paulo.