O que devemos ao mundo?

Paulo Maia

Mais um dia nasce para nós, seres humanos, que testemunhamos o momento atual mais ou menos perplexos, e por que não, vaidosamente orgulhosos porque somos, entre todas as espécies que ainda andam, rastejam, voam, nadam ou parasitam por este planeta, a única que se olha no espelho e busca reconhecer, conscientemente, mais que um mero animal, mas uma espécie de semideus que molda seu ambiente para que este seja suficientemente habitável e seguro. Parece mesmo que estamos vendo seu sorriso largo, com sua cabeça levemente erguida, dizendo a si mesmo: “muito bem! É isso ai!”.

Mas o que este mesmo animal pode dizer diante do fato de que depois de tudo que fez, de toda a técnica que desenvolveu, de todo o conhecimento que produziu, de tudo que se edificou entre monumentos e embarcações que viajam este mundo e em outros, pessoalmente ou através de suas extensões robóticas, de que nada disso ainda garante que este planeta tenha se tornado suficientemente habitável ou seguro?

De que suas conquistas e seus esforços ainda estão muito aquém de qualquer afirmação categórica que sua lógica e razão podem conceber, acerca de que temos nossas vidas atuais ou de futuras, garantidas como uma experiência plena de satisfação pelo tempo que viver?

De que qualquer sistema de significado criado para dar conta do que está aí, seja religioso ou ideológico, simplesmente rui quando sentimos que a pílula que tomamos todo dia com o rótulo de modernidade para nos fazer encarar o dia a dia, é tragada com um profundo mal-estar?

Pois bem, caro leitor e cara leitora. Vivemos em um momento de difícil compreensão da humanidade e confusos com o significado de tudo que a espécie fez até agora. Parece que para muitos de nós, seguramos um corpo moribundo nos braços como herança da civilização e não sabemos o que fazer com ele.

Nos últimos anos e mais precisamente nos últimos dias, vemos o debate sobre mudanças climáticas navegar entre interpretações negacionistas e apocalípticas, e cada uma brandando relatórios com números e projeções que – isso não podemos negar – assustam e, independente de que lado a porca ira torcer seu rabo, parece que o tal corpo que cito no parágrafo anterior não tem mais como ser recuperado. Na verdade, o coitado jamais teve qualquer chance de recuperação. Nasceu para, aos poucos, sucumbir na sua própria sede de existência.

Está bem. Deixando o tom sombrio de lado e buscando entender de forma um pouco mais concreta quem somos nós, podemos, com pouca chance de errar, ver que somos uma espécie que explora seu ambiente como o fogo consome oxigênio para se manter aceso, certo? Afinal é isso mesmo. O nosso organismo precisa do mesmo oxigênio para queimar nossas energias e assim nos manter… acesos!

Como faço sempre aqui neste espaço, dou minha interpretação, opinião e, considerando que é somente isso, não posso afirmar mais nada além, mas vemos a olhos nus que algo de muito estranho ocorre no planeta já há algum tempo! Explorar recursos naturais é nosso modus operandi como espécie que busca sobreviver e reproduzir. E principalmente na esteira civilizatória. Muitas culturas exploram a natureza até sua exaustão a ponto de certos recursos jamais se recuperarem. Os vikings acabaram com as florestas que havia na Escandinávia por quase 300 anos na construção de seus barcos entre os séculos IX e XI.

Há tempos deixamos de ter um habitat natural, então seguimos um rumo inevitável de destruição para construir onde viver e achar que podemos ou que temos condições de fazer algo para conter problemas climáticos ou mesmo viver em harmonia com o meio ambiente, me parece mais uma falácia produzida pela razão, pela lógica. Uma espécie de aforismo que afirma que podemos fazer algo, sem percebermos que esse mesmo aforismo camufla algo criado por nós, uma armadilha da nossa natureza do pensar.

Ao tirarmos o véu da imaginação de nossa frente, provavelmente veremos que não há absolutamente nada lá fora, quero dizer, na natureza, fora de nosso ser, que indique que tal possibilidade existe. A possibilidade de sermos nós, seres humanos, harmoniosos com a natureza. Milhares de espécies surgiram e foram extintas milhões de anos antes de haver o primeiro mamífero na face da terra. Criação e destruição é parte do universo. Mas achamos que nosso caso é diferente. Não é. Mas concordo que o que estamos fazendo e o nosso estilo de vida atual, pode nos asfixiar e empurrar a espécie para o abismo de forma precipitada.

Há 4000 anos, buscando tão e somente sobreviver ao meio ambiente, a espécie tropeçou em sua grande primeira revolução, deixando a vida coletora e caçadora para embarcar num outro modo de viver, que se tornariam, então a civilização. Este novo modo de vida se mostrou bem-sucedido do ponto de vista da reprodução da espécie. Ainda que ele tenha trazido em sua esteira muita violência e ceifado muitas – mas muitas mesmo! – vidas, os seres humanos se multiplicaram. Se não, vejamos.

No ano 1 d.C., a população mundial era de 250 milhões. Precisou de 1600 anos para duplicar este número, quando chegamos a 500 milhões. Em plena Revolução Industrial, chegamos a 1 bilhão em 1850. Apenas 100 anos depois, já no século XX, estávamos em 2,5 bilhões. Sim, foi neste século de atrocidades como duas guerras mundiais, holocausto e bomba nuclear, mas também com medicina e agriculturas avançadas permitindo longevidade, tecnologia, televisão e computadores, que nos acrescentaram uma nova vida – a virtual –, que vimos a população chegar a 6,5 bilhões no seu final. Hoje, no início da terceira década do século 21, já estamos com 7,8 bilhões. As projeções para os próximos 20 anos é a de chegarmos a 9,2 bilhões!

E o que esses números apontam? Que a tecnologia e a civilização, a despeito do que fora preciso para consegui-la, nos garantiu mais que a sobrevivência da espécie, mas que ela pode se multiplicar absurdamente e dominar o planeta. Não se deve perguntar o custo disso tudo. Nada é de graça.

E para mim, esses números aparecem em cores vermelhas e trazem muito mais reflexões e incertezas do que aqueles que indicam que a diferença de 1 grau centígrado na temperatura dos oceanos podem trazer inundações.

Quanto mais do planeta precisaremos explorar para atender a todos? Temos lugar e recursos para todo mundo? Onde vamos parar? Ninguém sabe. Temos como rever as coisas e retomar de um certo ponto e seguirmos num caminho mais seguro? Não, não temos. Não se retrocede a história. Mas talvez a pergunta mais séria que devemos fazer é se estamos mesmos dispostos a renunciar o que conseguimos até agora para termos um lugar mais apropriado para viver.

Não tenho dúvida de que a espécie sobreviveria a um cataclisma. Somos ainda um animal pré-histórico, uma espécie com uma constituição biológica do paleolítico e mantemos recursos inatos que fariam com que sobrevivêssemos nas ruínas. Mas optar por deixar o conforto, a tecnologia e a infraestrutura até aqui obtida em troca de um futuro que não temos como garantir e nem sabemos como será, parece-me paradoxal e sem lugar na lógica capitalista do desenvolvimento e crescimento econômico, vigente hoje nos quatro cantos do mundo como a única fórmula de sustento que garante a vida. Mas, mesmo que fosse possível tal opção, vem outra pergunta: colocar o quê no lugar? Essa é a encruzilhada em que nos encontramos.

O que permitiu esse crescimento? Civilização e tecnologia, ciência! E não percebemos que estamos sobre tais pilares e sentados na própria causa do mal-estar que sentimos quando pensamos nas mudanças climáticas, na invasão de privacidade, na eminência da violência e na pobreza gritante jamais eliminada, apesar de tantas conquistas e riqueza geradas.

E se pensarmos em solucionar os problemas com mais tecnologia, apenas causamos mais transtornos. O século XX não teria visto as baleias se o petróleo não tivesse sido descoberto e transformado em energia. Pois é! Fósseis de bilhões de anos comprimidos no interior do planeta salvaram alguns indivíduos desta espécie à época. Pressentimos agora que sua extinção pode apenas ter sido prorrogada para um pouco mais à frente junto com muitas outras, nossa inclusa, condenadas a um destino que não conseguimos prever ou ter controle.

Mas, talvez possamos olhar um pouco para acima do espelho que reflete nossa face canalha e vislumbrar outros mundos. Não será para agora, claro, e provavelmente nem para todos. Mas não tenho dúvida de que nossa espécie pode chegar a outros planetas. E igualmente colonizá-los e… destruí-los.

Esse é um raciocínio que nos desorienta e deprime, eu sei. Mas a vida é o que é e as coisas são o que são. Mas vejam só! Ao finalizar este texto, percebo que minha mente busca em algum canto da razão, uma centelha de alento como quem busca incessantemente uma solução, pois essa é também nossa natureza.

Num mundo de hoje, com quase 8 bilhões de indivíduos, talvez seja o momento para pensar que uma agenda de deveres que temos que ter diante do mundo e da vida seja mais necessária do que a que fica exigindo direitos disso ou daquilo. Não acho que nascemos com direitos a coisa nenhuma, mas tenho uma certa suspeita de que devemos nos perguntar quais são os nossos deveres diante do que ainda resta neste mundo.

Paulo Maia é publicitário, um pensador livre e morador do Morumbi que mantém sua curiosidade sempre aguçada

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