O real é muito mais perigoso: uma leitura sobre o Sportwashing

O que tem por trás desta prática tão usada no mundo hoje?

O mundo árabe tem utilizado cada vez mais desta modalidade para limpar sua imagem perante o mundo e, principalmente, as superpotências endinheiradas. Mas será que ele é o único por trás dessa prática?

Imagem de jcomp no Freepik

Por André Calado, Beatriz Figueiredo, Gabriel David e Luiz Fernando Peres

A temporada 2022/2023 da Premier League, campeonato nacional de futebol da Inglaterra, pode estar marcando o primeiro grande passo da transformação do Newcastle United F.C., clube inglês sediado na cidade homônima. Após exatos 20 anos e apenas pela quarta vez em seus 131 anos de história, o Newcastle garantiu vaga na Liga dos Campeões da Europa, considerado o maior campeonato de futebol entre clubes do mundo.

Este feito, de grande valor esportivo para o clube, ocorre 19 meses depois do dia em que foi anunciada a venda da equipe para um grupo liderado pelo Fundo de Investimento Público (PIF) da Árabia Saudita, que corresponde ao governo saudita. Os valores da negociação não foram divulgados, mas segundo a imprensa britânica, a operação girou em torno de R$2,2 bilhões e colocou o Newcastle na prateleira dos clubes mais ricos do mundo.

Após o anúncio oficial, centenas de torcedores se reuniram em frente ao St. James’ Park para comemorar a nova fase do clube.

No entanto, apesar de trazer boas perspectivas de resultados para o time em campo em um futuro próximo, a negociação também levanta questionamentos sobre o que está por trás de um investimento tão alto em uma equipe de futebol por parte de um governo. Para Steve Chen, professor de gestão esportiva na Morehead State University, a resposta é simples, trata-se do sportswashing, uma prática muito comum entre governantes de diversas localidades na busca de aumentar sua reputação. “Todos os regimes e governos têm a intenção de utilizar os esportes como forma de benefício próprio”, afirma Steve.

Sportswashing é um termo criado para evidenciar o uso do esporte na construção da imagem de países que violam direitos humanos, têm casos conhecidos de corrupção ou outras atividades condenáveis. Ou seja, o país se apresenta como opção para megaeventos esportivos – às vezes até subornando instituições internacionais –, compra clubes ou grandes jogadores, tudo isso para que a atenção da mídia seja direcionada para o espetáculo proporcionado pelo esporte e desviada dos crimes que cometem.

Esta prática de mascarar as coisas está sendo muito vista em países do mundo árabe, em que seus mandatários investem em clubes de futebol ou megaeventos como a Copa do Mundo e Fórmula 1 construindo uma imagem positiva ao país e até mesmo tentando criar uma espécie de ligação e empatia com o resto do mundo.

Um dos principais países a fazer isso atualmente é a Arábia Saudita que com a riqueza acumulada com a comercialização do petróleo, gás natural e posição geográfica comprou um clube de futebol na Inglaterra e trouxe o maior esporte automobilístico para seu território, assim, atraindo o olhar do mundo ocidental com sua forma luxuosa de divulgar o projeto de poder deles, utilizando seu grande poder aquisitivo para chamar a atenção do público dos esportes.

Por outro ponto os Estados do ocidente como a Inglaterra criticam países como a Arábia por conta dessa maquiagem feita em cima de todos os problemas envolvendo direitos humanos, assassinatos e corrupção. O grande problema disso é que os ingleses possuem a intenção somente de mostrar a outros países que eles têm um posicionamento sobre esse tema a população mundial, mas por debaixo dos panos recebem uma grande quantia de dinheiro da Arábia Saudita com o grande investimento feito nos clubes ingleses, principalmente o Newcastle adquirido há pouco tempo pelos sauditas.

O Governo saudita possui a ideia do Saudi Vision 2030, uma estratégia usada para o país depender cada vez menos do comércio de petróleo, se desenvolver e diversificar sua economia, aprimorando os serviços públicos como saúde, educação, infraestrutura, recreação e turismo. Consiste também no aumento dos gastos nas forças armadas e fabricação de armas e munições para outros países, além de ser um grande hub para ligar os 3 continentes (Ásia, África e Europa) por estarem bem no meio do mundo árabe e terem essa vantagem territorial.

Mas para que esse plano ocorra com sucesso, é preciso que o mundo enxergue o país árabe como um exemplo e apoie positivamente os investimentos e as compras feitas no local, o que nem sempre ocorre.

Dinheiro de sangue

O público mais atingido pelo Sportswashing são os torcedores de futebol. Pessoas que, em muitos casos, vivem em prol de um clube e vêem aquilo que mais amam ser associado diretamente com um “dinheiro sujo de sangue”, como chama Andrew Page, criador do projeto “NUFC Fans Against the SportWashing”.

Andrew lamenta ter visto o Newcastle, seu time do coração, ser comprado por Mohammed bin Salman, príncipe herdeiro da Arábia Saudita e líder de uma ditadura sanguinária que oprime opositores e minorias. Com a criação do projeto, ele e seus associados fazem forte campanha contra os novos donos do clube e afirma nunca ter estado dividido em relação à venda, além de ter ficado desiludido ao perceber que o sentimento na cidade era de alegria enquanto ele se sentia triste, principalmente por ouvir falarem que era a única saída do clube inglês.

Mas apesar do esforço, a tentativa de combater esse governo nunca foi fácil e se dificultou ainda mais após a criação dos chamados “Trolls Eletronicos”. Os torcedores participantes do projeto contra o Sportswashing passaram a receber ameaças online de bots ligados ao governo saudita Especialistas em mídia digital dizem que o abuso é típico de contas de mídia social ligadas a um exército de trolls profissionais empregados pelo Estado no Etidal Global Center to Combat Extremist Ideology, em Riad.

John Hird, fundador do NUFC Fans Against Sportswashing, falou, em um artigo publicado no Daily Mail em 5 de novembro, sobre ter sido perseguido por esse “exército”, com as contas de bot comentando em suas postagens elogiando os proprietários sauditas do clube e difamando ele e o seu projeto. E como se isso já não fosse o bastante, o grupo ainda precisa lidar com torcedores que são a favor da compra do time.

Apesar de todos os crimes realizados no país, o príncipe saudita possui muito dinheiro e isso acaba por agradar muitos torcedores que buscavam uma melhoria no desempenho esportivo do clube. “Entendo que vamos ter jogadores melhores, mas seremos usados. Nós (do NUFC Fans Against the SportWashing) simplesmente não vemos lógica em sermos fantoches da Arábia Saudita. Sim, queremos ganhar, mas queremos que signifique algo também. Com todos os crimes que eles cometem, chegou em um ponto no qual o time se desvalorizou para mim. Hoje não significa mais tanto, de verdade. Foi algo muito direto. Eu simplesmente não queria”.

Em sua página, Page faz uma série de reportagens apresentando os graves problemas da Arábia Saudita e reúne um grupo de pessoas com o mesmo pensamento para protestar contra o Sportswashing feito no clube. Apesar de serem minoria dentro da torcida, ele continua firme em suas convicções: “Quando tudo aconteceu pensei que nós, como torcedores, poderíamos ter influência sobre quem assume o clube. Acredito que ao protestarmos contra um regime desse nível vamos gerar a eles uma insatisfação, porque tudo o que eles mais querem é projetar uma imagem limpa de si e para isso precisam da aprovação da diretoria e dos torcedores. Eu realmente acredito que se os protestos forem fortes, eles podem sair do clube”.

“Mataram 47 pessoas em um dia só.”

O futebol é o esporte mais popular da Arábia Saudita, e assim como no Brasil, é a grande paixão da população desde a infância. “Os sauditas adoram futebol e não só ao nível nacional, mas também acompanham a Liga dos Campeões, ligas europeias e muitos campeonatos internacionais”, conta Taha Alhajji, advogado saudita, apaixonado por futebol, que está exilado na Alemanha desde 2016.

Antes de buscar refúgio em território alemão, Alhajji atuava como advogado e ativista dos direitos humanos na Arábia Saudita, defendendo nos tribunais e fora deles as vítimas do regime absolutista vigente no país. No entanto, após a chegada do Rei Salman ao poder em 2015, o autoritarismo cresceu e este tipo de ativismo passou a ser perseguido pelo governo, fazendo com que ele buscasse um exílio. “A opressão aumentou muito nesse período, em 2016 teve uma execução em massa em que mataram 47 pessoas em um dia só. Eu tive que fugir para salvar a minha vida e a da minha família”, revelou Alhajji.

O advogado conseguiu fugir da Arábia Saudita para a Alemanha, no entanto, mesmo de longe, ele segue na luta para combater as práticas de violação dos direitos humanos ainda existentes no país, participando inclusive do projeto “NUFC Fans Against the SportWashing” juntamente com Andrew Page. “Eu consegui fugir, mas muitos dos meus colegas e ativistas foram presos e mortos”, relembra Alhajji.

Ainda em 2016, o governo saudita anunciou o plano “Visão 2030”, que tem o objetivo de mudar a imagem de um país fechado e religioso, para de um país mais aberto e globalista. Por conta disso, o país passou a investir na produção de grandes eventos esportivos e de entretenimento, mas para Taha Alhajji se trata apenas da utilização dos esportes como um soft power, na busca de uma maior projeção internacional “O governo tem usado figuras públicas, jogadores de futebol e eventos esportivos, como o golfe e a Fórmula 1 para encobrir essas infrações”.

A contratação do jogador de futebol português Cristiano Ronaldo pelo Al Nassr, clube da Arábia Saudita, envolvendo valores muito maiores do que os já vistos na Europa, foi apontada pelo advogado saudita como mais uma estratégia de desvio de foco das violações realizadas pelo regime saudita. “Não compraram o Cristiano porque ele vai ser bom para a equipe, mas sim porque é uma figura pública e ajudará a limpar a imagem do país”.

Outras situações semelhantes a esta podem ser observadas pela visita de Lionel Messi, jogador de futebol argentino, à Arábia Saudita em maio deste ano, como embaixador de turismo, e também na compra, já comentada, do Newcastle United por um fundo de investimentos do país com o príncipe Mohammed bin Salman como um dos donos.

A prática de sportwashing tem se tornado cada vez mais comum no mundo do esporte, e a Arábia Saudita se destacou nesse cenário. Com uma iniciativa do Visão 2030, o investimento no esporte tem sido uma das prioridades. No entanto, a compra do clube de futebol inglês Newcastle gerou controvérsias, já que a Arábia Saudita é acusada de violação dos direitos humanos e de censura à imprensa.

Porém, apesar das controvérsias e das críticas em relação à compra do Newcastle, vale relembrar que a Inglaterra possui laços fortes e políticos com a Arábia Saudita, inclusive no setor de armamentos. Além disso, diversos clubes de futebol ingleses receberam investimentos de fundos sauditas e de outros países do Golfo Pérsico, evidenciando a influência desses investimentos no esporte mundial e a necessidade de se debater os impactos sociais e políticos desse tipo de prática.

A conivência da Inglaterra

Uma matéria publicada pelo The Athletics em abril deste ano, apresenta registros de conversas privadas entre Boris Johnson, ex-primeiro-ministro do Reino Unido, e Mohammed bin Salman, que o alertou sobre as graves consequências econômicas para a Grã-Bretanha se a Premier League resistisse à aquisição. Então, apesar do presidente-executivo da Premier League, Richard Masters, ter afirmado para a BBC que “não houve pressão aplicada” pelo governo durante o processo de venda do clube e pensando na ideia de que a maior parte do petróleo do Reino Unido vem da Arábia Saudita, o quanto essa conversa pode ter influenciado a decisão final? “Na verdade, não há qualquer elemento ético. Basicamente, o que o governo diz que está bem, nós dizemos que está bem e, na minha opinião, não existe nenhuma dimensão ética na política externa do Reino Unido. E se olharmos para a forma como este acordo foi concluído.” Essa frase, dita por Andrew Page, traz uma reflexão interessante. Afinal, fala-se muito da problemática da Arábia Saudita comprar esses clubes e entrar cada vez mais forte no ramo do esporte. Mas afinal, qual o papel da Inglaterra no meio disso tudo? Apesar de não ser muito comentado, a Grã-Bretanha tem um vasto histórico de preconceitos e de abusos aos direitos humanos. Como ocorreu no século XX, com o campo de concentração localizado na África do Sul, o qual abrigava famílias bôeres deslocadas à força pelas políticas de terra arrasada. As forças britânicas destruíram fazendas removendo a principal fonte de apoio aos comandos bôeres, deixando mulheres e crianças sem abrigo, comida ou proteção de tribos locais. Com isso, pelo menos 40 campos de concentração foram construídos, mantendo ao todo, cerca de 150.000 refugiados bôeres. Durante o domínio colonial britânico na África do Sul, cerca de 150.000 pessoas foram presas em campos de concentração, das quais 28.000 podem ter morrido nos 40 campos construídos pelos britânicos.

Ao mesmo tempo, o governo britânico incentivou suas equipes esportivas a visitarem a África do Sul, e o Reino Unido usou o esporte para reprimir os sul-africanos e como forma de desviar a atenção de seus crimes e contravenções, onde o atual discurso global adota tal situação poderia ser certamente considerada uma “lavagem esportiva”.

Em outras palavras, o país pode estar usando esportes (especialmente futebol, críquete e rúgbi) para limpar sua imagem e reputação. Segue-se que, embora um país como a Arábia Saudita seja muito criticado por esse feito, vários outros países também usaram disso ao longo da história.

Há dois anos, o Governo britânico pagou uma indenização no valor de R$14.574,51 em média por cada vida perdida para 44 famílias afegãs. E a razão foi o bombardeio que o exército britânico fez em um hospital no Afeganistão e matou todos os doentes. A Grã-Bretanha bombardeou e matou pessoas inocentes.” Este caso, citado pelo Professor Simon Chadwick, um ex-jogador de futebol profissional e Professor de Esporte e Economia Geopolítica, é a prova de que os crimes e problemas cometidos pela Inglaterra não ficaram no passado. A lembrança de Chadwick ajuda a entender a tolerância dos países europeus às investidas de países como a Arábia Saudita, enquanto toda a imprensa está apontando o dedo para esses países. Segundo Simon, isso ocorre por conta do soft power (estratégias diplomáticas que não recorrem à guerra ou a artifícios mais agressivos) existente nesses países ocidentais, como no Reino Unido, onde ocorre fortemente com o ramo do esporte.

A partir de reconhecidos valores universais, como atividade coletiva de compreensão cultural e representação social, o esporte pode desempenhar um papel fundamentalmente político na construção da nação. Na Inglaterra, muitos departamentos usam essa ideia para se fortalecer. Como ocorre com o British Foreign and Commonwealth Office (FCO), que usou esse poder brando (soft power) para promover vigorosamente a marca britânica, usando as Olimpíadas e a Premier League para divulgar a cultura britânica no país e no exterior e até mesmo fortalecer a reputação do Reino Unido como um Estado moderno vibrante e centro global do mundo online que atua como uma cortina de fumaça para os problemas do país. E essa ideia de soft power é exatamente o que a Arábia Saudita idealiza para os próximos anos, assim como comenta Chadwick. “No futuro, as pessoas poderão falar primeiro da Saudi Pro League e da grandeza do futebol na Arábia Saudita. Falarão de futebol, de corridas de automóveis da Fórmula 1, e não das execuções e das prisões da Arábia Saudita.

Por fim, o professor diz que não se pode considerar um país bom ou mal, ao ser um país com um sistema político diferente e haver um conjunto diferente de valores. Não é um mundo imaginário, então, não existe um vilão e um mocinho na história e por isso diz, “O real é muito mais perigoso”, já que não há um lado que esteja com a ficha limpa. Mas, apesar disso, afirma que esse aumento de poder nos países do Oriente Médio traz um grande desafio, por ser uma grande ameaça aos sistemas de governação já estabelecidos.

Imagem de jcomp no Freepik

Os autores:

André Calado é jornalista
Beatriz Figueiredo é estudante de Jornalismo e tem experiência nas áreas de redação, social media e assessoria de comunicação; tem foco na área do jornalismo esportivo e possui quadros no YouTube para falar sobre futebol nacional, internacional e feminino, além de entrevistas com personagens da área esportiva; expressa seus pensamentos através da escrita e usa os livros como refúgio e fontes de inspiração e crescimento
Gabriel David é jornalista em formação na Universidade Presbiteriana Mackenzie e tem experiência na produção e edição de conteúdo para Youtube, voltado para a área do jornalismo esportivo
Luiz Fernando Peres é estudante de Jornalismo do Mackenzie apaixonado por futebol, um esporte que o motiva cada dia mais a querer estar envolvido nessa profissão; os motores da Fórmula 1 também o cativam e desde que saiu do colégio tem a certeza de que escolheu a faculdade e a profissão certa

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1 Comment

  1. Artigo muito interessante sobre o fenômeno do ‘sportwashing’ e a manipulação de eventos esportivos para fins políticos e de relações públicas. É importante estar ciente das tentativas de utilização do esporte para mascarar questões controversas ou violações de direitos humanos. Parabéns por abordar esse tema complexo e por promover uma reflexão crítica sobre o papel do esporte na sociedade contemporânea!


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