Há pouco tempo eu me sentia na ebulição da água na chaleira sobre o calor do fogo que a aquecia
Um conto de Simone Rodrigues
Na velha chaleira branca a água para o chá borbulhava quase obstinada em fazer “voar” a tampa que a cobria.
Sobre minha estimada companheira de tardes como aquela, uma xícara de porcelana amarela estampada com simpáticos gatinhos pretos, eu entornei o líquido quente e fumegante que exalava um perfume de camomila pelo ar.
Eu a carreguei comigo para uma aconchegante poltrona azul celeste, aquele azul bonito dos dias ensolarados, sabe?
Espalhado em cima dela, meu adorado cobertor apricot, peludo e amistoso, feito um ursinho, me aguardava para me envolver em um longo e amigável abraço.
Perto deles numa mesinha simples, porém muito delicada, alguns dos adoráveis sequilhos amanteigados feitos carinhosamente pela minha mãe, repousavam tranquilos sobre um pratinho, esperando o momento de serem devorados rapidamente por mim.
Então, devidamente acolhida, respirei profundamente me sentindo amparada, segura e preparada para confabular com meus pensamentos.
Há pouco tempo eu me sentia na ebulição da água na chaleira sobre o calor do fogo que a aquecia.
Essa descrição era perfeita para expressar meus antigos sentimentos.
Tórrido como chamas, meu coração queimava ante o brilho dos olhos acobreados que mantinham cativa a minha alma.
Eu acreditei… confiei em cada palavra vil e simulada, ardilosamente disfarçada, por lindos lábios que encenavam doçura.
Meus ouvidos se deixaram iludir, inebriados pelo harmonioso som da sua voz.
As falácias pronunciadas com deleite pelas notas musicais de sua canção ardil, espalharam-se confortáveis por cada um dos meus pensamentos concebidos entre o nascer do sol até o instante em que a lua usurpasse seu lugar no firmamento.
E aí por fim, quando meus olhos desejavam descansar à vista da fugaz constelação, no momento em que eu seguia inconsciente a terra dos sonhos, carregada pelos braços de minhas aspirações, você então assenhorou-se dos meus desejos, arrebatando minha existência para si.
No entanto, sem que ao menos um de nós esperasse sua caixa de Pandora, convenientemente camuflada, fortuitamente foi aberta revelando suas trevas.
Minha mente se perdeu na velocidade do declínio.
Enquanto meu corpo apressava-se em desvanecer na escuridão do abismo, a gravidade se tornava minha única certeza.
Cada lembrança foi abrangida pelas sombras em um turbilhão de emoções desenfreadas.
Não havia nada sólido em que me apoiar enquanto meu ser experimentava a vulnerabilidade extrema dessa queda incontrolável.
Ao chegar ao fundo, águas escuras abraçaram cada parte do meu corpo envolvendo-me em uma dança melancólica.
Na serenidade do silêncio absoluto naveguei entre a maravilha e o temor da vastidão.
Percorri as galerias e labirintos da minha alma ansiando emergir à superfície, onde a luz aguardava pacientemente para dissipar as sombras.
Planando sobre a desolação, ergui-me determinada em busca de mim mesma, escapando dos precipícios da decepção e da amargura.
Lentamente fui tecendo minha própria narrativa, moldando a inerente alegria que brilha irrefutável como um farol em meu coração.
O chá estava chegando ao fim e a essa altura meu espírito inspirava paz.
Repousei a xícara amarela vazia com seus gatinhos sorridentes sobre a mesinha, ao lado do pratinho agora desocupado.
Carinhosamente, desabriguei-me do enlace agradável do cobertor apricot.
Os raios dourados do sol da tarde sussurravam esperança, convidando-me a levantar e abraçar a vida.
Em mim havia uma luz intrínseca instilando coragem para enfrentar qualquer sombra que por acaso ouse surgir em meu caminho.
Simone Rodrigues é nascida e criada em São Paulo e há mais de 20 anos é moradora da cidade de Guarulhos; é visagista, hairstylist e maquiadora cuja jornada vai além dos salões de beleza. Em 2018, conquistou o 5º lugar no Prêmio de Literatura Guarulhos com seu primeiro livro, abrindo as portas para uma série de cinco obras subsequentes. Enquanto seu talento se destaca na arte dos cabelos, sua verdadeira paixão se revela nas páginas em que escreve, repletas de histórias de amor e fantasia destinadas a inspirar mulheres. Seus livros não são apenas uma expressão artística, mas uma extensão dos seus sonhos e de sua vida, dedicada a encantar e transformar.
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