O amanhã ainda está lá

Paulo Maia

Ela havia se preparado para este dia há muito tempo. Não tinha mais nenhuma dúvida. Era preciso ir embora. O desejo de dividir a vida com alguém envolto na esperança de uma ter uma vida razoavelmente estável com um amor correspondido há muito havia perdido o sentido, pois o tempo, entre tantas coisas, também transforma sonhos em realidade fria e implacável fazendo parecer ingênuo todo aquele começo apaixonado.

Mas há ainda muito a viver, então algo precisa ser feito. Conversas não adiantam mais; os caminhos tentados levam a um beco sem saída. E a decisão veio quando o lamento pelos planos cancelados deu lugar à decisão de não mais persegui-los, mas de enterra-los no passado e almejar outra coisa. Mas é necessário que tenha outra cor e outro brilho. E em outro lugar.

Uma semana antes havia comprado algumas poucas roupas estritamente necessárias para um novo começo e tinha deixado na casa de uma amiga do antigo trabalho. Este ela já havia se desligado a duas semanas, mas nada tinha falado. Transferiu suas economias para uma nova conta bancária e sacou apenas o necessário. O destino fora meticulosamente pensado para que não houvesse pistas de ser descoberto, nem que o trajeto pudesse ser rastreado. Por isso, fundamental rever a tecnologia que carrega consigo. Novo telefone; novo número. Praticamente é uma nova identidade.

silhouette of 2 person walking on street
Imagem por Jr Korpa on Unsplash

Na noite anterior, nada de sustos. Apenas a melancolia mais uma vez era a hóspede indesejada, mas com estadia permanente. Ele não suspeitava de nada. Nada comentou além do rotineiro. Reclamou dos latidos do cachorro do vizinho e aumentou o volume da televisão. Abriu a cerveja e sequer notou ela no corredor temerosa de que tudo pudesse dar errado. Chamou a pelo nome aos berros, perguntando o que tinha para comer. Ela, apreensiva, disse que ele que se virasse na cozinha, que ela tinha comido umas frutas e que não ia jantar. Para ele tudo bem. Era mais do mesmo. Mas disse que ela precisava se cuidar; que só frutas não iria alimentar.

Foi se deitar, mas apenas para um cochilo. Estava muito ansiosa e viu a hora que ele se deitou, resmungando alguma coisa, visivelmente embriagado. Não demorou muito para apagar. Minutos depois ela se levantou e sem fazer qualquer barulho, foi ao banheiro e pegou o essencial. Sua cabeça já estava a mil e ela já vislumbrava um outro futuro em cada batida do coração.

Antes de sair deixou uma carta dizendo tudo o que não teve coragem neste tempo todo. Um novo dia estava para amanhecer e ela tinha pressa. O movimento nas ruas aumentava a cada minuto e o táxi que pegou parecia não chegar mais. Em sua mente havia uma nova vida se abrindo, se mostrando possível após todas as promessas terem sido quebradas nesses anos todos.

tilt shift lens photography of woman laying on green grass
Imagem por Jr Korpa on Unsplash

No aeroporto ninguém podia desconfiar que aquela alma estava ganhando uma nova chance e que um mundo totalmente diferente estava logo ali, depois de algumas nuvens. Ninguém neste momento ou absolutamente nada poderia faze-la mudar de ideia. A inquietação deu lugar a um grande sorriso no momento em que entrou no corredor de embarque. Sim, ela parou por uns segundos e olhou para trás, a despeito do que dizem por aí. Era para ter a certeza de que o velho estava agora no passado.

Ele acordara de ressaca e atrasado novamente para o trabalho. Gritou pelo nome dela cambaleando para o banheiro. A cabeça doía e enquanto buscava acordar jogando água em seu rosto, estranhou o silencio do apartamento e saiu chamando por ela, indo de cômodo em cômodo. Foi até a cozinha na esperança de ter um café para tomar e então ele viu a carta na mesa.

Neste exato momento o avião decolava levando ela para uma outra esperança, outros ares, novos amigos e a um futuro no qual ela poderia se reencontrar com seu amor próprio com uma promessa de nunca mais voltar. Havia se convencida de que uma vida melhor era possível e que possibilidades iriam surgir junto de um novo amanhecer.

Este conto foi inspirado na letra das canções “She’s Leaving Home” (The Beatles) e “Never Coming Home” (Sting).

white and green floral textile
Photo by Jr Korpa on Unsplash

Paulo Maia é publicitário, um pensador livre e morador do Morumbi que mantém sua curiosidade sempre aguçada

Imagem destacada da Publicação: 
Illustration by Stories by Freepika

Assine

Nossa Newsletter

Inscreva-se para receber nossos últimos artigos.

Conheça nossa política de privacidade

Recommended Posts

1 Comment

  1. Gostei do conto “La Dolce Vita”. espelha um cotidiano tedioso e interminável, contudo acena para sempre mais uma tentativa…


Deixe uma resposta