Nem sempre o sorriso que trago no rosto é a vida que eu levo.
Bob Marley
No programa Roda Viva, da TV Cultura em fevereiro de 2017, quando perguntado sobre se achava que a busca por felicidade era uma coisa infantil, o renomado escritor e psicanalista Contardo Calligares, morto no último dia 30 de março, vítima de câncer, respondeu que era pior do que isso. Ele lembrou das máscaras de tortura usadas durante a inquisição, também chamadas de máscaras da vergonha. Feitas de ferro, exibiam um sorriso forjado na parte exterior. Como forma de castigo, a máscara era imposta para que as pessoas sentissem vergonha como tortura e não importava quanta dor sentissem, estariam sempre exibindo um sorriso, evitando mostrar seu verdadeiro sofrimento por usar aquilo em público. Para ele, Contardo, aquilo fora uma das coisas mais sinistras que já imaginara e via a nossa relação do sorriso na foto que tiramos como selfie, ou que basicamente tiramos para mostrar aos outros, a versão contemporânea da máscara da vergonha.
Ele achava que as pessoas deveriam parar de sorrir para as fotos. Ele apontou um dado histórico interessante. Chamou a atenção de que até meados dos anos 50, do século passado, não havia o hábito de sorrir para a câmera. De fato, nos primórdios da fotografia, registrar uma imagem levava muito tempo, tendo havido até profissionais que retocavam os olhos das pessoas, depois das fotos reveladas, pois muitas delas até cochilavam durante o processo! A tecnologia que trouxe o clique instantâneo, permitiu às pessoas poderem exibir seu sorriso, afinal. Manter um sorriso no rosto por muito tempo é mais difícil sem dúvida, mas é fundamental considerar que a relação que as pessoas tinham com a fotografia no seu início, provavelmente era a mesma que temos quando surge uma nova tecnologia. Normas e hábitos de uso vão se moldando e se acomodando em nossa cultura com o tempo.
Na famosa série Mad Men, o personagem Don Draper, interpretado por Jon Hamm, responde a si mesmo sobre o que se trata publicidade: felicidade. Sim, a publicidade ajudou, em certa medida, a estigmatizar o conceito da felicidade. O tema é discutido há séculos pelas diversas linhas filosóficas, místicas e religiosas. Muito provavelmente é algo no qual a humanidade se debruça desde que começou a engatinhar. Mas talvez, até a criação da publicidade e do marketing, buscar ser feliz tinha mais a ver com conduta, caráter e, predominantemente ações virtuosas que resultassem em um bem, especialmente quando pudesse ser compartilhado, além do fato de que, pelo menos no campo religioso e de viés ocidental das religiões de raiz abraâmica (Judaísmo, Catolicismo e Islamismo), felicidade, grosso modo, era algo que recebíamos por meio divino, pela graça ou somente quando e se Deus quisesse, por exemplo. Não era algo que estava simplesmente ao alcance de nosso esforço. Este entendimento é contemporâneo.
Ter uma atitude positiva em direção a algo alimenta seu ânimo e, consequentemente, seus atos para edificar algo dentro da realidade, sim. Afinal, concretamente, quando nos damos conta de que somos gente e nos vemos dentro de um atoleiro onde sofrimento e perdas são uma constante para além de nossa consciência, sabemos no fundo que se simplesmente ficarmos onde estamos e não fazer nada, pereceremos até um inevitável fim.
Vários ingredientes foram adicionados à equação da felicidade pela publicidade. Um deles, é sem dúvida, o consumo. Mas não por mera necessidade. Isso não traz felicidade. O que traz é possuirmos algo que nos destaca na paisagem. Seja pelo seu caráter único ou por aquilo que é reconhecido pelo outro como prestígio ou poder. Outro fator que faz a fórmula borbulhar é a busca pelo sucesso. Veja, não é exatamente “ter sucesso”, mas persegui-lo. Essa é a beleza da coisa trazida pelo Marketing. O significado do momento em que você se torna bem-sucedido em algo é tão ínfimo e efêmero que não se sustenta no instante seguinte. Na escala do sucesso, o que você conseguiu, já não serve mais. Se quiser continuar na brincadeira – ou manter o vício acesso – é sempre preciso ter uma conquista atrás da outra para se manter no topo, no sucesso. Parar significa estar à mercê da mesma lei da gravidade. Sua queda é inevitável e o fracasso é, para o Marketing e a Publicidade, viver o inferno na terra e entre seus pares na humilhação.
Mas no sistema capitalista, há sempre esperança. Conceitos e métodos para obter sucesso são desenvolvidos e oferecidos a todos, sem distinção, embalados e apresentados como mapas de um tesouro que estão em um certo Eldorado próximo de você. Até seus fracassos podem servir de ingredientes para a sopa de pedra que lhe vendem. Não dizem que basta acreditar em si para vencer? No fundo, você é convencido de que só há um obstáculo na vida. Você mesmo! Isso também é relativamente novo e nasce no espírito do Marketing. O individualismo é vendido como um valor intrínseco e uma característica quase sobre humana que guarda potenciais que podem ser revelados através de mantras e exercícios de empoderamento. Cada era produz determinadas crenças e a cultura se debruça criando sinais sobre suas comprovações de que são reais e que produzem resultados em nossos cotidianos. Nu fundo, no fundo, acreditamos naquilo que queremos crer. Ideias também podem ser viciantes e tão perigosas quanto qualquer droga natural ou sintética.
Mas, voltando à questão do sorriso, o que tiro para mim sobre o que disse Galligaris, é que imagens que fazemos de nós quase o tempo todo, e não apenas para os outros, não sublima apenas algumas torturas e humilhações que vivemos no dia a dia por não sermos bem-sucedidos no que queremos, a despeito de tanta oportunidade e potenciais que conceitos ou linhas de pensamento sugerem que há. O sorriso que fazemos em muitas ocasiões pode ser apenas uma mensagem de que, não importa o que, buscamos por algo que possa nos deixar mais felizes hoje, por mais banal, ridículo e, portanto, humano que isso possa parecer. E enquanto não temos nada ainda, sorrimos.
Paulo Maia é publicitário, um pensador livre e morador do Morumbi que mantém sua curiosidade sempre aguçada
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