Bolas vermelhas, luzes piscando, pinheiros que piscam mais do que deviam e uma certeza anual: está aberta a temporada oficial do perdão. No Brasil, isso vem acompanhado de peru recheado, farofa disputada e a firme convicção de que, depois da sobremesa, a alma também sai lavada.
O Natal tem esse charme. Celebra-se o nascimento de Jesus, o arrependimento dos pecados e, se tudo correr bem, o perdão — ao menos até o café do dia seguinte. É um pacote completo: fé, retrospectiva do ano e absolvição expressa. Uma espécie de spa espiritual com direito a pisca-pisca.
Mas não estamos sozinhos nessa ideia de “vamos zerar tudo e começar de novo”. No judaísmo, o Yom Kipur faz algo parecido, só que sem rabanada e com jejum. É o Dia do Perdão: reflexão profunda, arrependimento sincero e a esperança de sair dali uma versão melhor de si mesmo — ou, no mínimo, menos ruim.
No islamismo, o Ramadã segue a mesma lógica. Um mês inteiro de disciplina, introspecção e fé, que termina com festa, reencontro com Deus e aquele sentimento de “agora vai”. Agora eu aprendi. Agora eu mudei. Agora eu sou uma pessoa melhor. Pelo menos até fevereiro.
Católicos, judeus, muçulmanos: tradições diferentes, calendário variado, mas uma coincidência curiosa — todo mundo escolhe um momento específico para pedir desculpa formalmente, limpar a ficha e seguir a vida como se nada tivesse acontecido. Uma espécie de Ctrl+Alt+Del espiritual.
O problema é o intervalo entre um perdão e outro.
Porque mal termina a celebração, e lá estamos nós de novo: brigando, excluindo, justificando violências, cometendo pequenas e grandes barbaridades com a consciência relativamente tranquila. Afinal, o próximo perdão já está agendado. Se não no calendário religioso, pelo menos no psicológico.
Enquanto isso, o mundo assiste — entre uma música natalina e outra — a conflitos, guerras, atrocidades explicadas com palavras elegantes como “limpeza étnica”. A violação do direito à vida ganha discurso, rodapé, nota oficial. Deus, dependendo da ocasião, é citado como avalista.
E não é só lá fora, nos mapas distantes do noticiário. Essa mesma “limpeza” aparece em versões menores e mais discretas: no desprezo cotidiano, na indiferença social, na facilidade com que empurramos os problemas — e as pessoas — para fora do nosso campo de visão.
A essa altura, imagino leitores preparando argumentos teológicos para me convencer de que estou sendo injusta, cética ou espiritualmente mal-humorada. Pode ser. Mas confesso que a pergunta que mais me incomoda é outra, bem menos sofisticada: quando a lente vira para dentro, a gente encara?
Ou será que fazemos como sempre fizemos: arrancamos a folha do caderno, cantamos Jingle Bells com entusiasmo, nos sentimos perdoados — e seguimos cometendo exatamente os mesmos pecados, felizes e piscando, até o próximo Natal?






























