Fogo amigo

Dolce Selfcare

Cecília Trigueiros

Às vezes aquilo que nos parece terrível pode sofrer uma reviravolta inesperada e recheada de momentos únicos

Os artigos assinados não traduzem ou representam, necessariamente, a opinião ou posição do Portal. Sua publicação é no sentido de informar e, quando o caso, estimular o debate de problemas e questões do cotidiano e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo

Fogo!

Essa foi a primeira palavra que escutei proveniente da poltrona 23C, quando uma senhora corpulenta levantou-se, desajeitadamente, tentando desvencilhar-se do cinto de segurança e gritando. Em poucos instantes, todos os passageiros iniciaram um pandemônio ensurdecedor, bradando que havia fogo saindo de uma turbina do avião.

Ainda tomada pela sonolência do voo noturno, demorei um certo tempo para juntar os pontinhos e compreender que estávamos à uma altitude de 30.000 metros, muito distantes de casa e de fato, pegando fogo sobrevoando um oceano que eu não conseguia identificar.

Somos seres estranhos, fui tomada por uma calmaria quase catártica: em meio ao reboliço, as ordens do capitão para todos sentarem-se, fumaça e chamas, pensei suavemente na morte.

Reações emocionais à parte, enquanto a comissária de bordo tentava sem sucesso explicar como colocar as máscaras de oxigênio, aterrissamos aos trancos e barrancos e em posição fetal, na África, mais precisamente em Dakar.

E lá ficamos trancados na aeronave por mais de 40 minutos, com os motores desligados, juntamente com o meu grande amigo, o ar-condicionado, fritando e assistindo o espetáculo circense dos carros de bombeiros, ambulâncias e uma pequena multidão de profissionais tentando apagar o fogo.

Dona de uma pressão baixa de respeito, confesso que a calmaria deu lugar ao desespero, um dilúvio de suor e sufocada, cogitei raivosamente:

“Bateremos as botas por asfixia dentro do avião, ou voaremos pelos ares com a explosão da turbina… De qualquer maneira, será um adeus caloroso…”

Imagem por Pawel Gaul em Canva Fotos

Finalmente deslizamos como crianças por uma rampa inflável e nos deparamos com soldados trajando boinas vermelhas, falando francês, cara fechada e metralhadoras em punho. O Senegal é um país de regime governamental historicamente conturbado, está situado na parte ocidental da África, com toda a riqueza da fauna e flora do continente, além do clima de fornalha, para meu desespero, também é lá que termina o famoso Rali Paris-Dakar.

Parecia um pesadelo sem fim quando os soldados confiscaram os passaportes, justificando tratar-se de questões de segurança. A senhora da poltrona 23C ainda tentou protestar, mas há argumentos defronte uma metralhadora?

Bonitas, vocês sabem, nós precisamos ir ao banheiro independentemente da situação e foi exatamente o que fiz. Adivinhem? No lugar do vaso sanitário havia um buraco no chão. Deu vontade de chorar, mas as necessidades fisiológicas eram prioritárias e o choramingo deu lugar à um alívio imenso quando diplomatas chegaram, cada qual procurando seu compatriota e fomos informados, sem maiores detalhes, que iríamos para um hotel da cidade.

Entrei em um quarto escuro, tomada pela exaustão física e mental e desabei no colchão, perdendo-me nas horas. Um pedaço de cortina entreaberta permitiu que a luz do dia abrisse os meus olhos e o apetite.

Dirigi-me ainda zonza de fadiga para o salão do café da manhã, quando…calma. Não!  Não havia um salão, o desjejum ficava em meio à praia, debaixo de tendas enormes e coloridas, sombreado por coqueiros, com tamanha fartura de comida que reconheci um brilho gourmand nos olhares dos passageiros que chegavam aos poucos e grogues como eu.

Bonitas viajantes, os camarões eram do tamanho de lagostins!

A desgraça parece unir as pessoas e fiz bons amigos de diversas nacionalidades, entre coquetéis e festins gastronômicos, na praia particular com areia fina e branca do resort seis estrelas. O mar era translúcido, sereno, um santuário silencioso com tendas, garçons sorridentes e particulares, sob o sol apaziguado pela brisa do Berço da Humanidade.

Vista área de Dakar, Senegal
Imagem por Derejeb em Canva Fotos

E foram quatro dias e noites de puro prazer, spa, massagens na praia, música ao ar livre, longas caminhadas na areia brilhante, bangalô luxuoso com decoração típica do país, banhos de mar seguidos por iguarias saboreadas em um dos cinco restaurantes que ficavam abertos a noite inteira.

Vocês estão se perguntando quanto custou essa estadia para poucos, e a resposta é: “Nada!”

A companhia aérea encarregou-se de todas as despesas e os passageiros do “catastrófico” voo 497 souberam aproveitar como ninguém!

Os quatro dias passaram voando e fomos avisados que um novo avião da Air France havia pousado para nos levar para casa. Embarcamos olhando pelas janelinhas da aeronave o paraíso que se distanciava cada vez mais, porém cientes de que permaneceria junto às nossas memórias para sempre.

Bonitas, a moral da estória é que às vezes aquilo que nos parece terrível pode sofrer uma reviravolta inesperada e recheada de momentos únicos.

 A vida é mesmo imprevisível: uma hora estamos prestes a sermos consumidos pelo fogo, para em seguida, nos encontrarmos agraciados com um oásis por obra das mesmas labaredas agora, providencialmente amigas.

E viagens são capítulos especiais, lidos e relidos sucessivas vezes, alguns tristes, outros cômicos, mas sempre acompanhados de um sorriso agradecido pelas experiências incríveis.

Boas férias (com sol e sem fogaréu!) e até quinta!

Imagem por Kinwun em Canva Fotos

Cecília Trigueiros é formada em Marketing e maquiadora profissional e especialista em autocuidado e beleza. 

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