…fragmentos da memória…
Um sentido leve que preenche um espaço vazio
A sala está na penumbra. Apenas uma luz fraca que vem de um abajur não muito grande, encostado no canto, incide nas páginas amareladas daquele velho livro de capa vermelha. Os dedos leves folheiam as páginas que aos poucos deixam de ser misteriosas para aqueles olhos castanhos que estão por de trás de lentes finas de uma armação que sustenta a curiosidade de um homem de maneira atraente. Tudo o que ele procurou fazer em sua vida foi com o intuito de se manter leve, profundo e estranhamente contente.
Ele caminha de um lado para o outro, procurando não deixar que seus membros se atrofiem. Não há ninguém com ele, apenas objetos que decoram uma bela sala. Estantes com livros – uns mais velhos do que outros -, poltronas macias, vasos que abrigam bonitas flores e quadros de uma inquietude significativa. O homem que agora respira fundo está preocupado. Sua mente trabalha incessantemente para resgatar um passado que está arraigado à sua pele, que agora, pretende desvencilhar-se. Ele para de zanzar e se vê olhando os livros da velha estante. Entre alguns títulos que observa, fixa o olhar em um de capa vermelha na prateleira acima de sua cabeça. Seu olhar é de uma estranheza incômoda, como se aquele livro não pudesse fazer parte de sua fascinante biblioteca. Em um gesto leve, retira o livro e o segura com a palma da mão esquerda, para com a direita abri-lo, sentindo nos dedos o pó que se acumulara com o tempo.
Não passou da primeira página. Seus olhos agora brilham e em devaneio sente uma forte emoção, como uma febre que o acomete de baixo acima e o impede de continuar a folhear o livro. Olhou para o lado e a viu. Essa belíssima mulher sentada em uma das poltronas o olha com um sorriso angelical. Após admirá-la por alguns segundos, ele escuta sua voz suave e que insistia em penetrar em seus sentidos.
“O tempo é uma coincidência. A fascinação tomou conta de mim. Não tenho mais dúvidas! Você fez parte de minha vida e bebeu o único gole da minha paixão, mas não se deixou embriagar. Talvez…”, neste momento a mulher é interrompida. “Não podia ter feito aquilo. Tudo acabou como não deveria. Um momento interrompido e abandonado. Você agora é uma ilusão que viaja celebrando minha alucinação?! Quase que posso tocá-la! Lembro-me muito bem de tudo. Quero buscar no íntimo toda a verdade de nosso amor, de nossa paixão. Essa sim, eu sei que existiu com muita força”. E a voz de mulher resoluta entoa: “às vezes eu te confundo com uma caverna inexplorável; como um navio à deriva, prestes a naufragar. E eu não pretendo acabar com minha vida tão vulgarmente. Necessito de segurança, prosperidade, fogos de artifício e um lar onde nada falte, nem comida, vinho e amor. Solte-se de seus fantasmas e acredite que fora muitas coisas que levou e envolveu teu ser massivamente”.
Ouvindo aquelas palavras que já escutara antes, o homem caminha para mais perto dela e com um gesto carinhoso toca-lhe o rosto e lhe beija a face e depois a boca. Com um olhar apaixonado continua: “alguma vez lhe disse para não tocar meu coração? Não. Você o invadiu e praticamente o devorou com sua fome de mulher. Seduziu minha alma e escravizou meu corpo! Depois foi traindo bem devagar o doce que só havia em nosso relacionamento. Eu pude te amar. Você enxergou isso? ”
Agora ele está nervoso. Ainda tem muito o que falar, mas aguarda pelo momento certo. Muitas visões e imagens entravam e saiam de sua mente, levando-o ao despertar de um imaginário com grande maestria.
“Não fique assim neste estado de quem vê as coisas pelo lado castrado de uma fraca imagem sem cor”. O som suave dessas palavras parecia mesmo vir dos movimentos dos lábios da mulher. Ela suavemente passou a mão no rosto dele e prosseguiu: “o vento desmanchava meus cabelos e você estava sempre disposto a arrumá-los, mesmo sabendo que a atitude era em vão. Mas você gostava de passar a mão neles e eu também gostava muito disso. E quando me abraçava, você me beijava com todo o desejo de um homem apaixonado e enlouquecido de amor. Eu gostaria de poder entender todo aquele universo que estava ao nosso redor. As cenas do nosso amor eram, como posso dizer, absolutamente a expressão que nossas emoções pouco a pouco iam deixando fluir para que o sol penetrasse em nossos poros como uma simbiose. Porém as pedras desse caminho ficaram maiores e eu não tive, ou não pude ter, a coragem de atravessá-las como você o fez. Apesar de que o que eu penso é que você talvez jamais tenha enxergado os obstáculos que aparecerem em nossa trajetória. Eu não pude virar as costas a isso e não resisti. O passo seguinte seria fatal e eu apenas optei pela sobrevivência. Não posso te censurar. O que aconteceu foi um momento único e lindo, mas ele terminou. Vamos virar a página dessa história.
“Acontecimentos não são meras formalidades do cotidiano! Eles podem vibrar, você sabia? ”, grita o homem com a imagem que aos poucos retrai e começa a embaçar em cores pardas, sem muita definição. “Esqueça o convencional e olhe mais fundo no íntimo dos seus sentimentos… não me deixe… não fala nada que não possamos desfazer ou se arrepender depois…”
Então fortes dores de cabeça lhe invadem a mente e embaralham seu raciocínio e sua percepção do real. Uma carga emotiva muito forte tomou conta de sua consciência por alguns instantes e se viu de joelho diante de uma poltrona vazia e segurando o livro de capa vermelha na mão, aberto na primeira página, onde se lia: “As palavras só possuem força quando nós decidimos dar significado a elas”.
Ele voltaria a ter outros delírios acerca do passado. E os aguardava com um desejo inquietante.
Paulo Maia é publicitário, um pensador livre e morador do Morumbi que mantém sua curiosidade sempre aguçada
Imagem destacada da Publicação:
Imagem por Valerie Elash
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