Não há beleza na dor, mas urubus podem ser abatidos pelo pouso manso de um colibri na nossa sorte
Ciça você não anda, flutua.”
“Cecília leva uma vida de sorte…”
Essas foram algumas das frases que eu estava habituada a escutar ao longo da minha vida. Talvez, as minhas belezas sempre habitaram nas letras, cores, animais, amores e flores.
Uma pontada. Tudo começou com uma pontada no pescoço levando a crer que se tratava de um mero torcicolo insistente. Passaram-se meses e após inúmeros relaxantes musculares, anti-inflamatórios, massagens, além das aquisições dos apetrechos fisioterápicos mais esdrúxulos possíveis, provenientes da China e com promessas de cura, decidi que estava na hora de procurar uma ajuda profissional.
O dicionário descreve incontáveis dores, vejamos algumas:
“Sofrimento provocado por uma decepção, pela morte de alguém, por uma tragédia; mágoa: dor de perder o pai.”
“Piedade de si mesmo ou do sofrimento de outra pessoa; compaixão: demonstrou uma dor imensa diante da pobreza.”
“[Figurado] Expressão de um sofrimento, de uma tristeza física ou moral: música repleta de dor.”
Não, essas não são as minhas, digo minhas porque após 8 meses de convívio diário, posso classificá-las como minhas inquilinas que não se sujeitam à ação de despejo.
Voltando ao Aurélio e aterrissando no meu locatário indesejado, vamos à descrição:
“Sensação desagradável ou penosa, de intensidade variável, causada por um estado anômalo do organismo ou parte dele e mediada pela estimulação de fibras nervosas que levam os impulsos dolorosos para o cérebro; sofrimento físico.”
O pai dos burros falhou na descrição, assim como eu. Tratava-se de um proprietário e não locatário aquele que domina por inteiro todo o meu ser. Quanto às palavras do dicionário impreciso, minha agonia implacável é pulsante, chega a queimar, impiedosa, persistente e desalmada que é, não admite intervalos de tranquilidade, furtando-me as noites de sono.
E não para por aí. Quando se está inebriado pela angústia, a maldita no auge da soberba, aproxima-se auxiliada de crueldade, envenenando a mente, fazendo de mim um outro ser. Nada de cores, sorrisos e amores. O psicológico é afetado por completo.
Citando o macabro romance de Oscar Wilde, pode-se dizer que me tornei um Dorian Gray ambulante na versão pintura disforme; mal-humorada, nervosa, impaciente, palavras ríspidas para aqueles que mais preso aliadas à momentos de silêncio e clausura absolutos. A minha pintura é envelhecida, tensa e decorada por pinceladas grosseiras do autorretrato da minha pior versão.
Fui ao ortopedista que analisou todos os exames e recebi a notícia de maneira breve e reta:
“Artrose avançada da cervical, essencialmente de origem genética, muito prematura e aliada a outros fatores. Remédios para dor, injeções, adesivo de opioide no corpo, indicação de morfina se necessária e fisioterapia intensiva.
A senhora deve procurar imediatamente um reumatologista especialista em pescoço e fazer uma infiltração no hospital. Em última instância, uma cirurgia com colocação de haste de aço na cervical, com alto risco de paralisia parcial ou total do corpo, sem garantias de sucesso.”
Saí de lá ainda sem cair a ficha, olhei para o alto e avistei um enorme pássaro negro. Abri um ligeiro sorriso irônico quando me lembrei da frase sombria do poeta Augusto dos Anjos:
“Um urubu pousou na minha sorte.”
Entrei no meu quarto, sentei-me ao pé da cama e chorei por mim num ato de autocomiseração. Mas não me dei por vencida e decidida a ganhar essa cruzada, desmarquei clientes, comprei todos os remédios, tomei-os à risca e fui ao dia seguinte à primeira sessão de fisioterapia.
Para a minha surpresa, me senti em casa. Na central dos desafortunados, entre grunhidos e suspiros, encontrei alento ao perceber que não era a única com um urubu acomodado no meu ombro. Terminada a sessão, voltei para casa feliz comigo mesma e ligeiramente aliviada.
Caiu a noite e a maldita vingando-se do meu breve momento de calmaria, retornou com uma força colossal, tirando-me o sossego, o alívio e a razão. E assim foi durante dias e noites, não havendo mais distinção entre um e outro; a tortura era constante.
Agora aos prantos, contorcendo-me de dor, sem força muscular no braço esquerdo e exausta, apelei para a morfina no hospital.
O parque de diversões mudou de endereço; da Sephora diretamente para a farmácia. Lá encontrei meus novos melhores amigos que dissertavam longamente sobre os efeitos sedativos no corpo provenientes dos componentes químicos enquanto aplicavam injeções de 3 em 3 dias.
“Os adesivos de Salompas que estão com uma oferta especial. Vai levar hoje?”
Meus melhores amigos cuidam de mim.
A chegada do novo colar cervical acolchoado, macio, cor de rosa e com as medidas exatas para o meu pescoço queixoso, assemelhava-se à sensação que vivenciamos quando abrimos o primeiro presente de Natal.
Nova consulta, novas medidas: trocar a fisioterapia por acupuntura até o tão esperado dia da infiltração.
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Num estado de submissão característico dos fracos e rendidos, concordei sem saber exatamente do que se tratava. Tropeçando pela casa devido à vertigem das bombas farmacológicas, nauseada e insone, fui levada pelo meu noivo para uma sessão de eletroacupuntura.
O local era um velho conhecido, o Day Spa de Massagem em que fui tantas vezes maquiar e exercer o que faço de melhor: trazer bem-estar e autoestima à tantas mulheres, presenciando deliciada os largos sorrisos seguidos das selfies confiantes da beleza ressaltada pelos meus pincéis.
A essa altura eu não enxergava belezas, o pássaro negro já havia cravado as garras na minha carne.
O que se seguiu não posso afirmar com precisão. Algumas picadas indolores continuadas por uma leve corrente elétrica percorrendo cada centímetro da minha angústia. Adormeci.
Um toque suave no ombro abriu meus olhos e pude vê-la com clareza. Cláudia, pequena como suas agulhas, sorrindo e vestida de branco, me fez acreditar por um instante que eu estava numa espécie de Éden.
A terapeuta esticou a mão, segurando a minha e me pôs sentada. Não escutei direito o que ela disse, naquele momento eu estava numa condição de transe. O usurpador da minha paz física e mental havia se aquietado.
Agora eu conto os minutos para a próxima sessão com o adicional de ventosas que, segundo a medicina milenar chinesa “extraem o perverso do corpo”, ou seja, todas as patologias.
É claro que não estou curada, o caminho é longo, muitas noites são sofridas, mas compensadas pelos dias desprovidos da perversidade. Meu retrato de Dorian Gray está trancado em um armário e com ele enclausuraram-se também quase todas as minhas feiuras.
Aos poucos estou retomando minhas atividades e fazendo as pazes com tudo que sempre me encantou. Voltei a passear na praça ao lado da minha casa, admirando a alameda de Ipês brancos que percorre todo trajeto. Flores alvas caem dos galhos como flocos de neve, ladrilhando o chão de terra batida feito cristais de gelo imaginário em pleno Trópico.
Não há beleza na dor, mas urubus podem ser abatidos pelo pouso manso de um colibri na nossa sorte. E eu encontrei o meu!
Meus sinceros agradecimentos ao Espaço Girassol Day Spa (@espacogirassolspa.brooklin, @espacogirassolspa.vilamadalena) e à terapeuta Cláudia Cassone (@claudiacassoneterapias), um colibri.
Os artigos assinados não traduzem ou representam, necessariamente, a opinião ou posição do Portal. Sua publicação é no sentido de estimular o debate de problemas e questões do cotidiano e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo
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