Todo fim de ano tem seus rituais. Entre balanços, promessas silenciosas e expectativas renovadas, existem também rituais afetivos que se repetem, como assistir aquele filme que já sabemos de cor, mas que insistimos em rever. Para muitos, “Sozinho em casa” é já uma tradição familiar dos últimos 30 anos; para outros — e confesso que me incluo — rever “Love Actually” ou“ O Amor acontece” (título que recebeu em Portugal) é, não só renovar a esperança no amor, como um constante objeto de aprendizagem. À primeira vista, uma comédia romântica leve, quase previsível. Mas talvez seja justamente nessa aparente simplicidade que o filme consiga tocar em verdades profundas sobre vínculos, escolhas e responsabilidade emocional.
Hoje, ao assistir ao filme com o olhar de quem trabalha diariamente com relações humanas, percebo que “Simplesmente Amor” fala menos de romances perfeitos e mais da forma como cada personagem se posiciona diante do amor. O sentimento está presente em quase todas as histórias, mas os desfechos variam conforme a coragem — ou a ausência dela — para agir com verdade.
Uma das cenas mais simbólicas envolve uma personagem improvável. Rowan Atkinson, eternizado como Mr. Bean — conhecido por arrancar gargalhadas quase sem pronunciar uma palavra — surge aqui num papel que, à primeira vista, pode parecer silenciosamente cruel. Na joalheria, ao atender Harry, que compra um colar para a amante, ele demora, exagera nos detalhes, acrescenta fitas, laços e enfeites de maneira quase ritualística. Sob um olhar mais profundo, porém, pude ver desta vez que sua presença assume um caráter quase arquetípico: como um anjo silencioso que tenta apelar à consciência de alguém que está a trair o compromisso matrimonial. Cada segundo a mais é uma oportunidade de recuar, de evitar a dor, a ruptura do casamento e o impacto numa família inteira. O humor transforma-se, então, em um aviso ético sutil, onde o silêncio fala mais alto do que qualquer condenação.
Harry, porém, movido pela luxúria de homem de meia idade que se deixa seduzir pela sua jovem secretária, não entende este sinal do Universo. No dia seguinte, quando Karen (Emma Thompson), a esposa, encontra o colar no bolso do casaco do marido, acredita que – finalmente- irá receber uma joia, e não mais o previsível lenço. Essa cena sempre me chama a atenção porque traduz algo que vejo com frequência no meu trabalho: o desejo profundo de ser escolhida, de ser priorizada, de sentir-se amada de forma concreta. A desilusão vem quando ela percebe que o presente não era para ela. Sem grandes diálogos, o filme nos mostra como decisões não assumidas geram feridas silenciosas e duradouras.
Curiosamente, o mesmo Mr. Bean reaparece mais adiante como cúmplice do amor genuíno. No aeroporto de Heathrow, ele distrai os funcionários enquanto o pequeno Sam corre para se despedir da menina por quem está apaixonado. Sam foi incentivado pelo padrasto, Daniel (Liam Neeson), que confessa o arrependimento de não ter dito mais vezes à esposa, antes de morrer, o quanto a amava. Aqui, o filme nos lembra de algo essencial: amor que não é expresso a tempo costuma transformar-se em arrependimento.

É também através de Daniel que o filme toca, ainda que de forma lúdica, num conceito que encontra respaldo na física quântica: a ideia de que participamos ativamente da criação da nossa realidade. Ao dizer, meio em tom de brincadeira, que só voltaria a se apaixonar se encontrasse Claudia Schiffer, ele verbaliza um desejo claro, mesmo que pareça improvável. E o improvável acontece. Como coach de relacionamentos, vejo nessa cena uma metáfora poderosa: quando damos nome ao que desejamos, alinhamos intenção, emoção e ação, algo se reorganiza. Não se trata de magia, mas de coerência interna — um princípio que a própria ciência já começa a reconhecer.
Essa mesma coerência aparece na história de Aurélia, interpretada pela atriz portuguesa Lúcia Moniz. Mesmo sem falar uma palavra de inglês, ela se apaixona por Jamie (Colin Firth). Separados pela língua, pela cultura e pela distância, ambos escolhem agir. Aurélia começa a estudar inglês acreditando que um dia o reencontrará. Jamie, por sua vez, aprende português e atravessa países para declarar seu amor. Ainda que exista um certo exagero e algum desconhecimento da cultura portuguesa nessa cena, o que se destaca é a imagem de um homem decidido a conquistar a sua amada — alguém que não espera as condições ideais, mas cria o próprio caminho.
Nem todas as histórias, porém, encontram esse nível de alinhamento. Karl (Rodrigo Santoro) sente atração por Sarah, mas não consegue sustentar a relação diante dos desafios emocionais que ela enfrenta ao cuidar do irmão. Aqui, o amor não falha por ausência de sentimento, mas por falta de maturidade emocional, presença e compromisso — algo que observo com frequência nas histórias de relacionamentos que chegam até mim.
No fundo, Love Actually começa e termina no mesmo lugar: o aeroporto de Heathrow, em Londres. Um espaço de despedidas e reencontros, de lágrimas e abraços. Um símbolo perfeito de transição — como o próprio fim de ano. É ali que percebemos que o amor está sempre em movimento.
Talvez essa seja a grande mensagem para o dia 31 de dezembro. Falamos muito de amor, mas seguimos criando objeções: diferenças sociais, culturais, linguísticas, a distância, o medo do julgamento, o receio de sair da zona de conforto. O filme — e a vida — nos convidam a rever essas crenças. Porque, no fim, o amor, assim como o ano que se encerra, não precisa ser perfeito para ter valido a pena. Precisa apenas ser escolhido — com consciência, presença e verdade.






























