Dores que se escondem nas sombras da nossa história

La Dolce Vita

Paulo Maia

Nunca será demais olharmos para a história e ver como a crueldade faz parte da nossa natureza, e que ela sempre ocorre sob forte justificativa de seus perpetradores. Poder, vaidade, dinheiro, sexo ou pura maldade mesmo, são os grandes motores de toda a violência que nós, seres humanos já infligimos em nossos semelhantes. Em todas as suas formas possíveis.

Mas reconhecer que somos violentos ou no mínimo, favoráveis à violência sob algum pretexto, não garante que vemos o lado nefasto e indigente disto a ponto de buscarmos agir de outra maneira, seja individualmente ou coletivamente, visando a paz. Não quer dizer também que não tentamos. Buscamos harmonia no caos, mas temos que entender que a violência é a forma da natureza existir e assim, somos filhos de sua realidade.

O ator James Norton como o personagem Gareth Jones em "A Sombra de Stálin", Netflix

Ainda que nos dias hoje possamos dizer que socialmente evoluímos para que existam leis e normas de coibir agressões e violência, física ou psicológica, viver ainda é uma batalha que leva a extremos pela sobrevivência. De tudo o que já inventamos, produzimos, criamos, de maneiras concretas ou pelo campo das ideias e significados, não há como, nem de perto, garantir uma vida saudável e segura para quem quer que seja. Pensar que isso seja possível, soa sempre como uma utopia.

Mas até aí, não se revoltar ou não se indignar com a violência é outra coisa. Somos ambivalentes: somos cruéis ao mesmo tempo que nos comovemos com a crueldade. Monstruosidade é não sentir nada diante do horror.

Forjada ao longo do tempo de nossa socialização dentro da civilização, para administrar conflitos e promover ordem de convívio, a Política por vezes, se apresenta cega e aponta caminhos tortuosos e letais a muitos, para que apenas poucos exerçam poder e influência. Sempre estará em jogo a perpetuação de quem pode exercê-las em detrimento de quem não tem como se defender.

Assisti neste final de semana “A Sombra de Stálin” (Mr. Jones, 2019), disponível na Netflix, da diretora polonesa Agnieszka Holland. O filme se passa no início dos anos 30 (mais precisamente em 1933) e se baseia na história real do jovem jornalista Galês, Gareth Jones que, intrigado com as notícias de prosperidade da União Soviética, faz uma viajem à Moscou e outra clandestina à região da Ucrânia para testemunhar o desvio de grãos pelo governo soviético, provocando fome e a morte de milhares de russos.

Na história, esse período é conhecido como Holodomor, os crimes de Stálin que mataram milhões de russos, e que foram amplamente acobertados por uma grande parte da imprensa mundial. E mesmo intelectuais davam pouca ou nenhuma importância nas denúncias ou notícias que recebiam sobre o que acontecia na região, pois preferiam ver o projeto comunista na União Soviética, uma alternativa viável de sociedade numa Europa pós-Primeira Guerra e dizimada pela gripe espanhola e atormentada por uma grande recessão.

O filme traz uma peculiaridade muito interessante: Andrea Chalupa a roteirista do filme, criou cenas fictícias de um encontro de Jones com o escritor George Orwell, autor de uma das mais conhecidas críticas ao stalinismo, “A Revolução dos Bichos” —no qual o dono da fazenda também se chama Mr. Jones.

Mesmo com um roteiro adaptado para criar suspense e dramatização, o filme é uma excelente viagem à história para vermos do que somos capazes de fazer pelo mal, principalmente quando achamos que estamos do lado do bem. E que cinismo é tão maligno quanto a ingenuidade é perigosa.

Como citei, ao checar a história, vemos que crueldade e matança são parte do enredo da vida humana e de nosso legado, mas presenciar a violência e a morte de perto é como ter no ar que respiramos o assombro para a nossa alma. Há cenas no filme bem fortes, mas não há dúvida de que não conseguimos imaginar exatamente o horror que foi tudo aquilo, nem o que sentiram aqueles que presenciaram a realidade ou sofreram nela.

À época, o mundo ainda veria a seguir uma segunda guerra mundial, holocausto nazista, bomba atômica e diversas outras atrocidades que fizeram do século XX, para muitos, o mais absurdo em termos da prática de horror. A humanidade trocara as guerras religiosas pelas ideológicas, aparelhadas com o que de melhor havíamos conseguido com técnica e ciência, outrora, também aliadas com a esperança do bem.

A violência está sempre andando junto conosco e a vemos ainda de forma recorrente hoje em dia: na morte cotidiana por roubos, assaltos e pelo comando do crime organizado; no deslocamento social e psicológico provocado em nós por uma expectativa de vida impossível de alcançar; pela desinformação que viaja por vastos canais cibernéticos e em plataformas virtuais nas quais agora também são espaço de interação social; por políticas e ações governamentais (ou pela pura falta delas) que quebram economias e levam milhões à pobreza, que acabam, vejam só, tendo de apelar à mesma violência que queriam escapar, para poderem sobreviver. E ainda a vemos mais nas nossas ações quando há corrupção, exploração, discriminação, extorsão, escravidão etc.

Será que realmente pode haver uma forma de se evitar a violência, pelo menos entre nós?

Faço a pergunta, mas não creio em uma resposta simples ou positiva. Talvez tenhamos mesmo que entender de que a vida entre nós, humanos, não é muito diferente da nossa relação com todas as diversas coisas do mundo que nos coloca em risco. Estaremos sempre andando no limite e desconfiados não apenas dos outros, mas dos nossos próprios instintos.

Será que nos importamos com a violência apenas quando a sofremos? E quando a provocamos? Qual é a nossa justificativa? Sempre haverá uma.

Lembre-se: quando jogamos luzes nos cantos onde a violência pode se encontrar, ela sempre buscará novas outras sombras para se estar. Pois é nelas que ela produz seus melhores frutos.

Paulo Maia é publicitário, um pensador livre e morador do Morumbi que mantém sua curiosidade sempre aguçada

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