Lúcia Nascimento, autora premiada pelo livro de contos Ruínas no 4º Prêmio Ufes de Literatura, faz sua primeira incursão no romance com a obra Aqui, Ontem, publicada e em pré-venda pela editora 7Letras. Os temas centrais são o luto e a memória, sobretudo com um apontamento sobre o que se perde de si a partir do que morre com o outro.
Aqui, Ontem nasceu de uma profunda reflexão da autora sobre a vida e a perda. Lúcia Nascimento explica que, no romance, ela narra “a busca pelas histórias que nunca chegaremos a conhecer, sobre nós mesmas e sobre as pessoas que amamos”. A obra é um mergulho nos sentimentos reais que permeiam a existência, explorando vazios como os do abandono, da morte e das perdas acumuladas durante a vida.
“Existe uma imagem de que gosto muito, sobre como o luto pode se assemelhar à sensação de estar se afogando. Se eu seguir me debatendo, não conseguirei sair dali. Mas se deixar o corpo quieto, ele terá mais chances de voltar à superfície ou, ao menos, de encontrar o chão e dar um impulso para subir novamente”, comenta Lúcia.
A estrutura narrativa reflete essa perspectiva, que Lúcia descreve como um processo aberto, sem conclusões fechadas ou respostas definitivas. A obra também é atravessada pela experiência pessoal da autora com o luto. Após a morte da mãe, Lúcia passou a refletir sobre quantas de suas próprias histórias desapareceriam com ela, e sobre como certas memórias só poderiam ser contadas por quem já se foi. É nesse ambiente de ausências presentes que o romance se constrói, explica.
Outra vivência pessoal da autora que enseja reflexões na obra é o fato de ter uma irmã adotiva, assim como Alice, a protagonista do romance. Em Aqui, Ontem, Alice foi adotada na infância e, após a morte da mãe adotiva, inicia uma busca pela mãe biológica, a fim de se aproximar de partes da sua própria história que ainda não conhece. “Há muito tempo queria escrever uma história sobre como poderia ser o encontro da minha irmã com a família biológica, que ela não chegou a conhecer. No romance, crio uma ficção sobre essa possibilidade”, comenta. Essa vontade se alinha ao desejo de narrar os vazios, elementos tão centrais no livro.

“A narrativa é totalmente ficcional, apesar de os sentimentos narrados serem reais”, reforça a autora, lembrando também que, desde a infância, anda pelas ruas tentando imaginar quais eram as histórias das pessoas que passavam por ela. Histórias que ela nunca chegaria a conhecer.
Jornalista e pesquisadora com formação em Teoria Literária e Literatura Comparada, Lúcia Nascimento integrou a experiência acadêmica ao processo criativo. Ao iniciar a escrita de Aqui, Ontem, ela estava desenvolvendo sua dissertação de mestrado. “Enquanto estudava teoricamente o tempo e o espaço de uma narrativa, fazia exercícios ficcionais: descrevia movimentos que desaceleravam o ritmo do texto; ensaiava repetições que retratavam a paralisia de um processo de luto; buscava na minha própria experiência a possibilidade de uma voz literária, quando não havia palavras para dar conta dessa mesma experiência”, conta a escritora.
Descrito pelo poeta Wilson Alves-Bezerra como um “romance-pergunta”, Aqui, Ontem narra o mergulho de Alice na escrita enquanto atravessa o luto pela mãe e enfrenta a dor de uma traição.
A personagem Alice mais famosa da literatura ocidental, protagonista do romance de Lewis Carroll, começa o romance sentada, entediada, ao lado da irmã, sem ter nada para fazer. A protagonista deste romance de estreia de Lúcia Nascimento também se chama Alice, também tem uma irmã que a acompanha, mas é já mulher feita, que caiu na toca do coelho da vida adulta: foi abandonada pela mãe biológica – essa mulher que me pariu –, acaba de perder a mãe que a adotou, foi traída pelo marido Pedro e, entre curiosa e inconformada, ingressa no que ela mesma chama de “estado de escrita”.
Em tal estado, parte numa pesquisa interior, com algo de desvario, tentando se apoiar em algumas perguntas: quem é a mãe biológica que a deixou? Quem é a mãe que ela perdeu? Por que Pedro a traiu, e com uma moça mais jovem? Porém, logo essas perguntas se tornam outra, que mostra o próprio limite da sua busca: que histórias você não contou a ninguém? Quantas são as histórias que morrem com uma pessoa?
No limite, o que ela se pergunta é: o que fica na experiência e não é transmissível? O que a própria Alice, em sua empreitada apaixonada, também não consegue dizer? Presa nessa fenda da linguagem, nessa pergunta irrespondível, cria-se o romance-pergunta Aqui, ontem. O título sugere a superposição de imagens em tempos que se fazem presentes: o da lembrança, o do trauma, o tempo estilhaçado, a ausência física. O espaço de Alice é pleno, com o que só ela pode ver. Os objetos dizem sobre os que já não estão, ao tentar também ela, Alice, cogitar e contar o que não se vê e não conta: Alice adulta absorta olhando sua mãe biológica, que não a vê, numa das cenas mais inquietantes do livro, num encontro falhado.
Lúcia Nascimento, diferentemente de Alice, sabe por onde vai e nos brinda com este romance de estreia, pequena joia, um livro a um só tempo engenhoso e delicado. Nele, sustenta a interrogação e o espanto de uma Alice rediviva que não se contenta em viver e nos faz, na companhia dela e em seu desamparo, percorrer a espiral do luto.
Orelha do livro assinada pelo poeta e escritor Wilson Alves-Bezerra

Sinopse
No romance Aqui, Ontem, duas histórias se entrelaçam, entremeadas pelo luto. Em primeira pessoa, acompanhamos o dia a dia da narradora, Alice, logo após a morte da mãe adotiva. Seus escritos fluem entre presente e passado e buscam, a todo o tempo, recuperar a imagem da figura materna. Alice recorre a fotos para lembrar o que a memória em luto insiste em apagar: o rosto da mãe ainda jovem, os momentos vividos com ela, os momentos finais.
Enquanto vive o luto, uma segunda história, narrada em terceira pessoa, se desenha: mais do que a busca pela mãe, o que Alice busca é a possibilidade de ficção, as palavras possíveis para narrar o vazio. Ela se desloca no espaço (o “aqui”) e esconde no movimento um desejo: o de voltar a um tempo anterior ao das perdas (o “ontem”).
Trecho da obra
Escrevo a partir de uma ausência, de várias ausências. Dia um. Ou dois. Talvez quatro. O telefone ainda parece, a todo o tempo, que vai tocar. E que do outro lado da linha será dela a voz que ouvirei. A voz da minha mãe, contando o que vai fazer naquele dia de sol, contando da avó, das dores no joelho da avó, do almoço que vai preparar no final de semana, do filme assistido na noite anterior, pela metade, porque dormiu no sofá até quase o nascer do sol.
Talvez o luto traga com ele as memórias de todas as outras perdas, e sejam elas as que impedem a volta à lembrança das memórias boas. Há uma abstração no que é para sempre. Porque para sempre é sempre a última cena. Não há mais movimento. Mas eu não sei, eu nunca soube, como escrever últimas cenas.

Aqui, Ontem
145 páginas
Informações para aquisição do livro

Lúcia Nascimento é escritora, jornalista e pesquisadora de literatura contemporânea. Autora de Ruínas (Edufes, 2020), livro de contos vencedor do Prêmio Ufes de Literatura. Aqui, ontem (7Letras) é seu primeiro romance. Mestra e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), é graduada em Jornalismo pela mesma instituição. Suas pesquisas acadêmicas refletem sobre a produção de autoras contemporâneas da literatura brasileira e latino-americana, a partir da aproximação com teorias críticas feministas, além das relações entre literatura, trauma e memória. Já atuou como gestora cultural, no Sesc São Paulo, e é parecerista de projetos artísticos. É também idealizadora, roteirista e apresentadora do podcast Relatos Mínimos, em que entrevista escritores e artistas cênicos.