Uma noite de Teatro do Oprimido em 1986

La Dolce Vita

Paulo Maia

O ano era 1986, se bem me recordo, período bem próximo das eleições. Era meu primeiro ano como aluno de Comunicação Social, com ênfase em Publicidade e Propaganda, na Faculdades Objetivo, que anos depois viria a ser a Unip, Universidade Paulista.

Tínhamos um grupo formado para um trabalho na área de Teatro, se não me engano, para a matéria de Comunicação Comparada (se não me engano, também). E sabe como é aquela coisa de trabalho em grupo para faculdade: vamos empurrando com a barriga até que um ou dois do grupo, geralmente os mais inteligentes e esforçados (mais esforçados que inteligentes), resolvem fazer o trabalho e colocar o nome de todo mundo. Pelo bem do convívio e para a manutenção das amizades que surgiam, ou na aposta de prováveis paqueras que sempre estavam na pauta do dia (e da noite).

Sim, o tempo estava passando e nada de ter qualquer ideia para o trabalho. Este consistia em uma parte que deveríamos entregar um individual, escrito, sobre o tema, e a outra parte, algo feito em grupo e com uma apresentação (o termo “performance” existia e era bastante usado no meio artístico, assim como “happening”, e ainda não havia sido capturado pelo mundo corporativo, termo que também não era comum na época).

E nada de termos ideias! Claro, vinha coisas como reproduzir alguma cena de uma peça conhecida ou mesmo escrever algo. Mas, e o talento para tal? Nós, jovens de 20 e poucos anos, sonhávamos em sermos publicitários, não atores!

Eu estava descobrindo um mundo diferente com tudo novo, buscando abandonar minha adolescência e experimentar o que aquele período e ambiente traziam para mim. Por isso, logo que comecei a faculdade, tinha me inscrito em um grupo de teatro, promovido pelo Diretório Acadêmico. O cara contratado para nos orientar e formar esse grupo era, até então, um jovem que havia chegado de Salvador, Bahia, com a esposa e um filho de, se não me engano (mais um), na época, uns 3 anos, e nas costas, uma desistência de 5 anos da faculdade de medicina, para tentar uma carreira de direção teatral.

Ele era um pouco mais velho que todos nós, mas estava também na casa dos 20 e poucos anos. Luiz Felipe Pondé, hoje um dos filósofos mais famosos do Brasil, hiper midiático, era o cara e, ao longo do tempo, se tornou meu amigo e mentor em diversas áreas do saber, entre elas a filosofia, claro, e o teatro. Mas essa é uma história para outro texto!

Fora Felipe (que é como eu o chamo desde aquela época) quem introduziu no grupo, como dinâmica de estudos, o teatro de Augusto Boal. Mais especificamente, o Teatro do Oprimido, cujo teor e prática fazia muito sucesso, especialmente entre os militantes de esquerda, justamente por trazer em seu âmbito, o uso da arte como forma de expor as lutas sociais e de classes, encenando relações de conflito nas quais sempre havia uma relação de opressor e oprimido. Era um teatro basicamente de motivação política, à época, afinal, ele fora forjado por Boal entre os anos 60 e 70, pelo menos no Brasil, no auge da Ditadura Militar, ainda que poderia, e deveria, ser usado para retratar e trazer à reflexão, toda e qualquer relação de opressão: em casa, no trabalho, nas relações amorosas e de amizades etc.

E foi então, voltando à história, que eu me lembrei disso e propus ao grupo de trabalho, que fizéssemos uma apresentação sobre o Teatro do Oprimido. Como estávamos chegando próximo dos 45 minutos do segundo tempo, tínhamos pouco para planejar e precisávamos improvisar.

Imagem por Eduardo Pastor em Unsplash

A característica principal deste tipo de Teatro é que, em sua apresentação, não há, ou não deve haver, diferenças entre espectador e ator; não há palco separando os dois e o espectador não sabe que o que está acontecendo é um teatro, ou seja, uma encenação. Por isso, neste sentido, há muita discussão sobre os rumos, pois apesar da encenação ser planejada, ou seja, escrita e ensaiada, quando ela ocorre, a interação com as pessoas que assistem acaba ocorrendo e, o ator e o grupo, devem estar preparados para o improviso, especialmente para situações difíceis ou constrangedoras, que fatalmente vão ocorrer, como intenção final.

Aliás, você sabe quando o objetivo é atingido quando um espectador, que não sabe do que está acontecendo, é trazido para dentro da encenação, justamente pelo que está sendo encenado. O conflito precisa ter uma determinada dinâmica e retórica que faz com quem alguém, que aparentemente não tem nada a ver com o caso, tenha uma reação de revolta com a situação opressora e acabe se envolvendo, fazendo parte da cena, que cresce com sua participação.

É claro que sempre há alguém “supervisionando” para evitar que pessoas possam sair feridas ou que confusões escalem a ponto de levar a algum desastre. Há quem seja mais radical ao não se importar de deixar a coisa correr solta.

Então, voltando ao meu grupo da faculdade, pensamos: ao invés de fazermos uma apresentação tediosa para a classe sobre o conceito, teoria e objetivos desse tipo de teatro, resolvemos encenar algo antes, para criar um frisson e um agito (gíria da época). E explicar depois.

Como citei acima, era a época de eleições e as campanhas estavam a toda. Havíamos saído da Ditadura e a sociedade emitias ecos pela luta democrática. Então decidimos que iriamos criar uma situação na qual traríamos alguém da classe para dentro de nossa encenação. Pensamos em gerar uma confusão, uma briga, envolvendo uma discussão sobre posições políticas. Sim! Você acha que essa história de polarização é nova? Já existia e era uma velha conhecida já naquela época, ainda que não usássemos esse termo.

Fizemos mistérios e no dia da nossa apresentação, por sorte do acaso, havia candidatos na frente da faculdade fazendo campanha, distribuindo os tais “santinhos”. Achamos isso o máximo, pois iria trazer credibilidade ao que estávamos perto de fazer.

Na hora de nossa apresentação, estávamos montando a classe como se fossemos fazer uma apresentação normal para todos. Momentos após começarmos, surge um cidadão na porta da sala de aula, de terno e gravata, com uma voz empossada, acompanhado de uma garota e pedindo licença para a professora para se dirigir alguns minutos com os alunos, para se apresentar. É bom fazer um lembrete aqui: trinta anos atrás, não havia catracas, portarias de vidro ou câmeras de vigilância na entrada de escolas e universidades. Basicamente qualquer pessoa podia entrar na faculdade e, eventualmente, assistir a uma aula. Sério. E éramos felizes assim (risos)!

A professora interferiu dizendo que ela estava dando aula e que aquilo era inoportuno e desrespeitoso, mas acabou cedendo porque nós (mal sabia ela), dissemos que não haveria problema e que ele poderia falar algumas palavras. Ele entrou na sala, pegou uma das cadeiras e subiu em cima e começou a fazer um discurso político, desses mais baratos possíveis. Ficamos assistindo por alguns segundos, não sei se chegou a durar muito tempo, até que um colega nosso, do grupo, começa a discutir com esse candidato, dizendo que ele está atrapalhando e que não tem nada a ver o que ele está fazendo ou dizendo. A discussão vai ganhando tons agressivos até que esse nosso colega, levanta, gritando “chega” e parte para cima do tal candidato, como quem vai dar-lhe um soco. Neste momento, a confusão se generaliza com todos da sala. Gente começa a gritar, correr e muitos vão em direção aos dois bagunceiros para apartar a suposta briga.

A professora sai correndo pelo corredor, chamando por um segurança. Corro eu atrás dela e a alcanço nas escadas. Peço para ela se acalmar e digo que aquilo tudo, era na verdade, nosso trabalho!

Voltamos à sala e, com tudo esclarecido, apresentamos a todos o Teatro do Oprimido. Conseguimos o que queríamos: trazer o espectador para dentro da cena, como resultado de uma reação a uma situação de opressão, ainda que, no caso, sua intervenção tenha sido urgente e necessária. E óbvia. Tiramos a nota máxima: 10!

Meu trabalho individual foi uma entrevista com o jovem diretor do grupo de teatro do Objetivo. Sim! Ele mesmo: Luiz Felipe Pondé, cujo trabalho me rendeu também um 10. Obrigado!

Tenho dificuldades em lembrar o nome de todos, especialmente da professora. Mas me lembro vividamente da experiência e da sensação que fora ter provocado uma situação de limite, da qual, creio que o Boal teria gostado e se orgulhado.

De volta a 2022, também ano de eleição e que promete ser cheio de surpresas, infelizmente, algumas bem desagradáveis. Caberia uma experiência parecida com a que propõe o Teatro do Oprimido? Não saberia dizer, mas conheço um monte de gente que eu teria o maior prazer em arrastar para um “happening” desses! Mas ao mesmo tempo, só de pensar, já fico cansado. Sabe, eu não tenho mais a paciência, o ímpeto e as ilusões juvenis da época.

Paulo Maia é publicitário, um pensador livre e morador do Morumbi que mantém sua curiosidade sempre aguçada

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