Um garnisé no Morumbi

Dolce Selfcare

Cecília Trigueiros

Hoje eu vim falar sobre outra beleza,
A mais genuína de todas.
Às vezes é impiedosa, por outras
Pura delicadeza
E atende pelo nome
De natureza.

O nosso bairro já foi uma enorme fazenda de chá

Com muito verde, capelinha e uma grande sede.

Construída pelo padre Antônio Feijó,

Tinha o senhor, a senzala e a sinhá.

 

Hoje a mata deu lugar aos prédios, ao trânsito

E não tem remédio… a civilização chegou.

Mas não desamine!

Na estória que vou contar

O passado da fazenda

Se fez voltar

Com o resto de natureza secular

Que não se deixa esquecer

Desde aurora

Até o anoitecer.

Era uma vez um galo garnisé

Que entre o dia, a noite e a madrugada,

Impiedoso com os tímpanos da vizinhança

Cantarolava num horário qualquer.

 

Eu não conseguia trabalhar

Ficava a me enfurnar num quarto distante do trovador.

Mas não tinha jeito,

Ele soltava a verborragia desafinada

Estufando o peito, macho alfa e orgulhoso

Exercendo a rotineira bulinada.

 

Eu imaginava a crista vermelha empinada,

Avisando toda galinhada:

 

“Sou eu! O dono do pedaço!

Acordem todos e escutem minha voz

E se não prestarem atenção

Meu canto admirável

Será cada vez mais feroz!”

 

Oito vezes.

Por oito vezes o galo soltava a cantoria infinita.

Coitada de mim, em mais uma tentativa de cair no sono,

Eu não podia acreditar e acordava aborrecida, esbravejando:

 

“Bicho garnisé,

Tenha dó dessa mulher

E vê se larga do meu pé!”

 

Não é possível!

O som que eu escutava longinquamente

Só podia ser obra de Morfeu

Que de tão envolvente

Já habitava a minha mente

Com um galo que ecoava estridente

As três e meia da madrugada.

Seria pesadelo ou caçoada?

Outro dia eu estava no meu deck

Depois do trabalho e tomada pela preguiça,

Quando mais uma vez o penacho tenor

Soltou outro solo avassalador.

Daí veio o pensamento do desassossego

Que uma única ave causou:

 

“Chega! Que galo mais azucrinante!

Quero descansar e ele não dá uma pausa

Nem por um instante!”

 

E ele replicou:

 

“Eu canto mulher chata

Porque estou doente.

Meu canto é triste e repetitivo

Uma vez que nada mais importa.

Se sou um galo

 Esse é o meu jeito de colocar para fora

 Toda minha lamentação.

E se te incomodo insensível ser,

É porque não tens coração”

 

Um silêncio funesto

De súbito arrepiou esse texto.

Fui tomada por um terror repentino e puxando pela memória,

Há tempos eu não via ninguém no vizinho.

Então…estaria o galo sozinho?

Sem comer ou beber, definhando aos poucos…

Pobre bichinho!

 

Aflita que eu estava, tomei uma decisão:

Liguei para o proprietário da casa vazia

De prontidão.

Após as protocolares cordialidades entre vizinhos,

Perguntei com tom de preocupação:

 

“Senhor V,

Desculpe a intromissão

Mas eu não sei se o senhor sabe

Que um galo abandonado

Com um timbre entre tenor e contralto,

Clama por socorro todos os dias.

Tenho como certo que ele está ao relento,

 Miserável e beirando a subnutrição,

Debaixo do seu nariz

E logo atrás do seu portão”

 

Em seguida, responde o tal vizinho:

 

“Senhora V,

Visto que me tomou por um carrasco,

Ou talvez a cara vizinha

Seja dada à uma rinha,

Me encontre hoje as quatro e quinze

Em frente à minha casa dos horrores

E tema da sua difamação

Para dar um basta

Na sua reclamação.

E se a senhora não vier,

Se vira nos trinta

Com a sua imaginação”

 

Fiquei possessa:

 

“Ele disse rinha?

O vizinho acabou mesmo

De me chamar de galinha?”

É agora que esse galinheiro vai pegar fogo…

 

O portão estava aberto

Nada de vizinho…

E eu entrei a passo reto.

E foi então para a minha surpresa

Que me deparei com um legítimo rei.

Lá estava ele, o galo

Com uma crista vermelha e imponente,

Vestido por uma vaporosa plumagem dourada

Com uma cauda preta e azul

Perfeita e saliente.

 

A ave tão pequena

Em nada perdia para outros penachos.

Com a fama de guerreiros,

São baixinhos de respeito

Que estufam o peito,

Com o bico afiado

Prontos para enfrentar

Qualquer outro macho.

 

Ele me olhou fixamente e disse:

“Ah! É você!

A mulher que só reclama do meu canto…

Veio bisbilhotar meu território?

Então vou logo avisando que de nada adianta

Seu falatório!

 

Eu era o mais feliz dos garnisés

Tinha meu milho, meu telhado e minha galinha,

Só que ela voou para a casa vizinha.

Decidiu ter os nossos pintinhos longe de mim

Fiquei numa solidão sem fim.

Canto mesmo a qualquer hora

Numa tentativa de ter de volta em minhas asas

Minha senhora.

 

Birrenta, ela não volta, cacarejando que vai chocar em paz

É para eu ficar por aqui mesmo até ela voltar.

Mas se você quer tanto saber

Sobre a minha vida trágica de opereta,

Saiba que os ovos estão para quebrar

Logo, logo termina essa mania de chocar.

 

E daí por diante seremos uma família.

E vou te adiantar,

Mulher irritante!

Que nós vamos aterrorizar

 Mais ainda o seu semblante.

Porque não será somente um

Mas todos nós a cantar!”

 

E assim terminou essa estória

Um galo, uma galinha e seus filhinhos.

Todos cacarejando e cantarolando alegres

Em pleno bairro fervilhando

De prédios e agitação,

E eles dando uma banana

 Para os avanços da civilização!

Cecília Trigueiros é formada em Marketing e maquiadora profissional e especialista em autocuidado e beleza. 

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Os artigos assinados não traduzem ou representam, necessariamente, a opinião ou posição do Portal. Sua publicação é no sentido de estimular o debate de problemas e questões do cotidiano e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo

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1 Comment

  1. […] do poema “Um garnisé no Morumbi”? Pois o penacho era de um vizinho e cantarolava dia e noite, interrompendo meu sono e […]


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