Duas décadas se passaram e os fatos cotidianos não demonstram que a Lei 10.639/03 tenha surtido efeito como política pública de educação antirracista. Em 20 anos, a implementação da Lei de Ensino de Cultura e História africanas e afro-brasileiras já poderia ter impactado a transformação antirracista.
A sociedade brasileira tem sofrido por falta da Educação antirracista, atualmente imposta por lei nas escolas públicas e particulares. O número de casos pode estar também ligado ao aumento de denúncias e ao fato de as vítimas contarem com vídeos e áudios como forma de registrar os abusos e crimes. Mas, essa maior visibilidade não tem inibido os casos e revertido em punições exemplares. Existe, por parte dos pais, a cobrança de providências dos educadores? Os livros literários, históricos e educativos estão incluídos na lista de materiais? Os currículos escolares foram adaptados? O que se fez para a capacitação dos professores e equipes técnicas?
“Com a Lei n. 14.645/2023 — que, além de alterar a LDB n. 9.294/96 em vários artigos, inclui novos textos para dispor sobre a educação profissional e tecnológica e articular a educação profissional técnica de nível médio com programas de aprendizagem profissional —, continuamos empenhados na luta para concretizar uma educação antirracista, visto que o cumprimento da Lei n. 10.639 continua sendo desrespeitado ou se mostra frágil na maioria das escolas brasileiras. Muito embora a referida lei tenha alterado a LDB em vigor, ela ainda não conseguiu mudar práticas racistas e preconceituosas que atuam tanto na gestão dos sistemas de ensino como em sala de aula. Ou seja, ainda hoje encontramos profissionais da área que desrespeitam as normas que orientam seu trabalho. Muitos deles, mesmo diante de inúmeros dados quantitativos e qualitativos que provam como essas práticas se mostram danosas no cotidiano escolar, se recusam a encampar a educação antirracista por considerarem na ilegítima. Outros agem assim simplesmente por não desejarem uma mudança substancial no que tange às questões raciais em nossa sociedade“, descreve Eliane Cavalleiro na reedição de “Racismo e antirracismo na Educação – Repensando nossa escola (7ª edição revista)”.

Embora tenha aumentado significativamente a contribuição de pesquisadores, antropólogos, sociólogos, historiadores, educadores e cientistas políticos dedicados à produção literária em todos os níveis escolares para recontar a história da participação do negro na formação sociocultural do Brasil, resgatar personagens ilustres e reconhecer personalidades intelectuais de importância incontestável, não se pode dizer que esses materiais estejam chegando às listas de bibliografia dos estudantes.
O que diz o MEC, para além da criação das caixas de lápis de cor que promovem o colorismo? A quantas andam as políticas de formação dos professores e a reformulação de disciplinas orientadas para essa mudança de paradigma? Como esses especialistas no assunto avaliam a situação?
A psicoterapeuta e especialista em adolescência, Carolina Delboni, estuda esse público e defende essa postura: “Há também propostas de mediação, focada nas questões socioemocionais dos professores e com cuidados extensivos à saúde mental e existencial de crianças, jovens e colaboradores, respeitando as especificidades e as fases de desenvolvimento de cada faixa etária. Quando a criança ou o adolescente se sente protegido e acolhido, fica mais fácil compartilhar suas dores e incômodos com os professores. Em algumas escolas, há ações contínuas e permanentes que vão além do Setembro Amarelo; o trabalho vai da formação da equipe pedagógica à elaboração das aulas com temas pontuais em algumas disciplinas, sobretudo com a participação dos alunos. Porém, essas ações não são comuns na comunidade escolar. Ao contrário, o desafio é constante“. Esses e outros conceitos constam de seu livro “As dores da adolescência (Summus Editorial)”.
Já a pesquisadora espanhola Maria Carme Boqué Torremorell declara em seu livro “Mediação de conflitos na escola” que “São incontáveis os estudos efetuados tanto na Espanha quanto internacionalmente que apresentam resultados altamente positivos do investimento em mediação escolar, sejam referentes à pacificação do clima da instituição, ao aproveitamento do tempo escolar – com o consequente aumento dos resultados de aprendizagem -, ao desenvolvimento e à aquisição de múltiplas competências individuais, ao aumento da consciência de grupo, à solidariedade entre colegas, ao fortalecimento docente, à participação das famílias ou à prevenção da violência. Por outro lado, percebe-se que um bom número de programas de mediação foi aplicado de maneira simplificada e precária e sustentado por uma formação elementar e recursos escassos. Limitam-se a um tipo de mediação sui generis muito diluída, que explora de maneira restrita esse mecanismo de gestão positiva de conflitos, o qual, além de resolver problemas interpessoais, deve educar e preparar as pessoas que dele participam para que sejam capazes de enfrentá-los em paz ao longo da vida“.

Outros autores do Grupo e da Selo Negro Edições, pioneira na publicação do segmento há 30 anos, são estudiosos do assunto e apresentam seus pontos de vista sobre porque a Lei ainda não é maciçamente aplicada e os reflexos na sociedade:
“A implementação da lei ainda é um desafio não somente diante dos retrocessos que tivemos, mas sobretudo, diante do racismo que é tão enraizado em nossa cultura, junto a falta de conhecimento sobre África, sua história, culturas e descendência negra, há um desinteresse motivado pela educação racista que insiste em estruturar práticas, currículos e instituições. Além da mudança de mentalidade é preciso realinhar as políticas públicas destinadas a educação antirracista e ao ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. A reconstrução está sendo feita, mas o trabalho ainda é longo e árduo para atingir todas as camadas da sociedade brasileira”, Tatiane Pereira de Souza, Doutora em Ciências Sociais, professora do Ensino Básico e Fundamental. e coautora de “Mulher negra e ancestralidade”.
“São 20 anos da Lei 10.639, a mais importante lei da história da República à medida em que procurou inserir na educação brasileira a maioria de sua população, a africana e afro-brasileira (NEGRA) como aquela que tem que contar a história e a cultura do País, mas que no passado foi escravizada, violentada, silenciada pela violência branco-escravista. A lei 10.639, assinada em 2003, obriga o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira na educação básica, bem como no ensino universitário, mas ainda não é cumprida pela maioria das escolas do país, atestando mais uma vez os nítidos racismos epistêmico, institucional e semântico-simbólico-cognitivo que se vive no Brasil como se demonstra a educação brasileira do passado e do presente”, Dagoberto José Fonseca, antropólogo e docente da UNESP Araraquara, coordenador da coleção “África, presente! Negritude e luta antirracista”.
“Existe um problema estrutural na educação que vai desde a formação dos professores nas universidades até as salas de aulas. Nas faculdades o que se ensina sobre a história da África e sobre os escravizados que foram sequestrados de seus países de origem, sobre as resistências, heróis e heroínas… é muito pouco, isso quando se ensina. Não basta ter uma lei tornando obrigatório o ensino, precisamos ter pessoas que acreditam que mostrar para os educandos as contribuições desses países, dessas pessoas, das culturas são essenciais e transformadoras para o desenvolvimento de nosso país. O papel do professor para o combate ao racismo no Brasil é extremamente importante, pois as crianças são os pilares de transformação. As crianças já chegam nos bancos escolares carregadas de olhares estereotipados, preconceituosos e racistas. Esses ideais são frutos de ouvidos atentos a tudo o que ouvem e presenciam em suas casas e nos ambientes em que estão inseridos”, Luciano Braga, professor da rede pública e coautor de “História da África e afro-brasileira em busca de nossas raízes”.
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