Você enxerga o mundo embaçado, uma delícia porque tudo e todos são ajustados e bem-acabados.
Suas lentes estão precisando ser trocadas, mas já faz tanto tempo, que você se acostumou com a nebulosa de todos os dias em forma de postes assimétricos, letreiros flutuantes, amigos de dentes imaculadamente claros e sua mãe de cabelos vermelhos sem raiz branca.
Você se acomoda e não se importa mais.
Para que insistir em tanta definição, se o sabor vive mesmo é no desfoque que multiplica a imaginação?
Está ótimo assim, vira e mexe dá até para flagrar cometas no céu e, atrás da janelas dos prédios, você detecta pontos brilhantes amarelos, azuis e brancos. Nada mais. É tão bonito…
O ar tinha gosto de sol e, depois de tudo feito, você decide pegar o carro e ir até aquele mini supermercado na esquina. Talvez seja uma boa ideia comprar um chocolate para multiplicar a serotonina que a luz forte já havia iniciado.

No meio do caminho e já passando pela casinha de parede sobre que sempre paira a dúvida se é laranja queimado ou ocre, você se distrai.
Sabe qual? Aquela perto do Pão de Açúcar Minuto, um charme abafado e perdido entre os prédios. Essa mesma, a casinha ocre ou laranja queimado em frente à farmácia, ao lado do Minuto.
Na hora de estacionar há um barulho, seu carro dá uma chacoalhada e vem aquele homem enorme gritando na sua direção e você ainda não se deu conta de que tinha batido o carro quando estava estacionando.
Como assim? Você é, apesar dos dedos masculinos apontados, uma excelente motorista, mas o carro dele estava meio borrado, igual àquela sua amiga que parece ter pele de cetim.
Você fica tomada pela surpresa e entre berros, um amassado e riscos nos dois carros, responde que vai fazer tudo o que ele quiser.
Deixa-o tirar um monte de fotos do seu carro, placa, nome da rua. Um pouco nervosa e depois de liberada, você entra no carro sem o chocolate e com a vista um pouco mais embaralhada do que o rotineiro.
Definitivamente a casinha parece abóbora…

Sete dias depois, na volta do oftalmologista, você entende que dobrou o grau das lentes durante esses cinco anos de brumas e tem uma conta alta para pagar no estrago que fez no seu carro e no do tal homem.
Que saco, as lentes são multifocais e agora você quase despenca da escada todos os dias.
Uma única lente dividida em três: longe, meio perto e perto. Segundo o vendedor da ótica é só uma questão de hábito, que no seu caso, nunca aconteceu de fato.
Depois de um certo tempo você também se ajusta com a constatação de que vai ter que levantar os óculos do rosto para poder enxergar os degraus de todas as escadas.
Agora, as letras são nítidas, as luzes dentro dos apartamentos são abajures, lustres e televisões ligadas. Nunca existiram cometas: aviões soltam nuvens de cinzas e sua amiga não tem pele de cetim.
Você viveu no nublado durante anos e não foi ruim. Mas também não é decepcionante poder enxergar as letras, agora enormes, dos livros e das legendas dos filmes.
Foi um longo período sem sujeira nas calçadas, beirando a perfeição.
Hoje é tudo preto no branco, foi-se a visão subjetiva e sua mãe precisa retocar a raiz branca, assim como você mesma.
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