Há muito tempo, a moda se alimenta de referências culturais. Tecidos, padrões, cortes e técnicas artesanais atravessam fronteiras e reaparecem nas passarelas e vitrines globais. Mas existe uma linha tênue entre inspiração e apropriação — e a recente polêmica entre a Adidas, o designer Willy Chavarría e a comunidade zapoteca de Oaxaca mostrou, mais uma vez, que essa linha não pode ser ignorada.
O lançamento do modelo Oaxaca Slip-On, inspirado nas tradicionais sandálias huarache, trouxe à tona uma ferida antiga: o uso de criações culturais sem reconhecimento, participação ou benefício para os seus verdadeiros autores. Não se trata apenas de “referenciar” uma estética. Trata-se de valorizar o trabalho manual, a história e a identidade de um povo que vê, recorrentemente, seu patrimônio transformado em produto de massa sem consentimento.
O pedido público de desculpas de Chavarría e da Adidas foi necessário, mas insuficiente se ficar apenas no campo simbólico. Reconhecer o erro é o primeiro passo; o segundo, e mais importante, é criar mecanismos de reparação e de colaboração genuína. Isso significa remunerar artesãos, incluir suas vozes nos processos criativos e construir relações comerciais que sejam justas e respeitosas.
O México, ao anunciar medidas para proteger legalmente as criações indígenas, sinaliza que não está disposto a assistir, passivamente, à diluição de seu patrimônio cultural. E esse posicionamento ecoa além de suas fronteiras. Em um mundo globalizado, onde uma ideia pode virar tendência em segundos, a responsabilidade ética das marcas precisa ser tão rápida quanto sua capacidade de produção.
O caso da Adidas é um lembrete: a moda tem poder para amplificar culturas, mas também para apagá-las. Cabe aos criadores e empresas escolherem qual legado desejam deixar — o de quem extrai sem dar nada em troca ou o de quem transforma o sucesso em ponte para o respeito e a valorização.

Imagem enviada para a Wikipédia em inglês por Bobak Ha’Eri, CC BY 2.0 , CC BY 2.0, via Wikimedia Commons
O que aconteceu
Início de agosto de 2025 – A Adidas lança o modelo Oaxaca Slip-On, que combina a sola de um tênis moderno com a trama de couro trançado típica das sandálias huarache, feitas há séculos por artesãos zapotecas da comunidade de Villa Hidalgo Yalálag, em Oaxaca. Nenhuma referência à origem cultural é feita na divulgação oficial do produto.
7 e 8 de agosto – A presidente do México, Claudia Sheinbaum, e a ministra da Cultura, Alejandra Frausto Guerrero, acusam a Adidas de apropriação cultural. O Ministério da Cultura destaca que as huaraches não são apenas um produto estético, mas parte de um patrimônio vivo que merece respeito e proteção.
8 de agosto – A imprensa internacional repercute o caso. Jornalistas, líderes indígenas e ativistas culturais lembram que o México já enfrentou situações semelhantes com marcas como Zara, Carolina Herrera e Isabel Marant.
10 de agosto – A polêmica se intensifica nas redes sociais. Hashtags como #HuaracheEsMéxico e #AdidasApologize viralizam, com milhares de usuários exigindo crédito e compensação à comunidade zapoteca.
11 de agosto – Willy Chavarría, designer do modelo, publica um pedido de desculpas, afirmando estar “profundamente arrependido que o calçado tenha sido apropriado nesse design e não desenvolvido em parceria direta e significativa com a comunidade oaxaquenha”; A Adidas divulga comunicado oficial pedindo desculpas, reconhecendo o erro e prometendo um diálogo direto com Yalálag para buscar formas de reparação e valorização cultural.
12 de agosto em diante – O governo mexicano anuncia que estuda medidas legais com base na lei de 2022, que criminaliza o uso não autorizado de símbolos, técnicas e designs indígenas. Especialistas afirmam que o caso pode abrir um precedente internacional na proteção de patrimônios culturais na moda.

Nenhum autor legível fora identificado. Domínio público com base em reivindicações de direitos autorais. Imagem via Wikimedia Commons
Entre a inspiração e a exploração
Ainda que pedidos de desculpas sejam um passo necessário, a pergunta central persiste: por que esse diálogo não aconteceu antes do produto chegar às lojas? O Oaxaca Slip-On não surgiu por acaso; ele foi fruto de um processo criativo que, em algum momento, escolheu ignorar a consulta e a parceria com a comunidade de onde veio a inspiração.
Quando grandes marcas utilizam elementos culturais sem permissão ou remuneração, perpetuam uma lógica de extração: retiram o que é único, transformam em mercadoria global e deixam para trás a comunidade que deu origem àquele conhecimento. Não é só sobre estética, é sobre poder e desigualdade.
Com sua legislação recente, o México demonstra estar disposto a proteger juridicamente seu patrimônio. Isso coloca pressão sobre outras nações para adotarem medidas semelhantes, e sobre a indústria da moda para rever seus processos. Afinal, criatividade não precisa ser sinônimo de apropriação — ela pode, e deve, ser uma ponte para colaboração, reconhecimento e benefício mútuo.
Um alerta para a indústria
O caso da Adidas é apenas mais um exemplo em uma longa lista de apropriações na moda, mas ganha força por envolver uma marca global e um designer de origem latina, o que evidencia que nem mesmo a proximidade cultural garante práticas responsáveis.
A solução não está em evitar referências cruzadas, mas em estabelecer processos éticos de cocriação. Isso significa remunerar artesãos, incluir suas vozes nos créditos e campanhas, e garantir que cada peça conte a história verdadeira de sua origem — não uma versão higienizada para caber no marketing de uma multinacional.
No fim, a moda tem duas escolhas: continuar explorando silêncios e lacunas legais, ou usar sua visibilidade para fortalecer as culturas que a inspiram. Cabe à Adidas, e a todos que ocupam posição semelhante, decidir de que lado da história querem estar.
Reconhecer e reparar uma negligência é um ato de virtude rara, e raridades assim são cada vez mais urgentes. A virtude, afinal, é um clássico que nunca sai de moda.

Imagem por Steven Biccard, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons
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