Por Tânia Lins
“Noite de 25 de outubro de 1923. Nenê entrava em um carro de praça quando Moacyr surgiu das sombras. Queria conversar com a cortesã. Os dois se sentaram no banco de trás do automóvel e iniciaram a derradeira viagem. Em meio a uma discussão acalorada, estampidos secos ecoaram no interior do veículo. Moacyr disparou três tiros à queima-roupa contra a ex-amante e, em seguida, atirou no próprio peito. Assim divulgaram as crônicas da época”, o guia do passeio finalizou a explicação enquanto apontava a lanterna em direção a uma escultura.
Ali estava a representação de uma mulher nua, entalhada em mármore branco, com o pescoço levemente inclinado em direção aos joelhos; aos seus pés jazia uma esfera também esculpida em mármore. Intencionalmente, a postura da beldade evocava o formato de um ponto de Interrogação – nome que o artista Francisco Leopoldo e Silva escolheu para a obra. Tratava-se do túmulo do respeitado advogado Moacyr Toledo Piza, que, segundo a versão amplamente divulgada, assassinara a cortesã conhecida como Nenê Romano, uma mulher que despertou a paixão e a cobiça de muitos homens.
A visita guiada pelo Cemitério da Consolação parecia levar vida a um local consagrado à morte. Em meio a tantas pessoas, concluiu que o gosto peculiar não era exclusividade sua – sempre foi fascinada pelo sobrenatural, por esse mundo invisível que apavora a tantos.

Ela continuou o passeio imersa em muitos questionamentos. As lápides, coalhadas de baratas, tornavam o local ainda mais fúnebre, mas não o suficiente para detê-la. Caminhava resoluta pelas alamedas, que pareciam sussurrar histórias esquecidas ao longo dos anos. Foi então que, movida pela inquietação, decidiu buscar mais informações sobre o trágico crime aparentemente passional.
Nos anos 1920, Nenê Romano destacava-se como uma das cortesãs mais famosas de São Paulo, tendo entre seus amantes até políticos influentes. Ao sofrer um atentado a mando de sinhazinha Junqueira, uma proeminente senhora do café, no qual foi atacada com uma navalha por seus agressores, a beldade resolveu buscar reparação na justiça. Na ocasião, seu caminho se cruzou com o de Moacyr Toledo Piza, advogado, jornalista e escritor pertencente a uma família tradicional paulistana.
Não demorou para que se envolvessem afetivamente, protagonizando um caso que durou cerca de dois anos. Sem aceitar o fim do relacionamento, o ilustre advogado, então, assassina a ex-amante, suicidando-se em seguida. Pairam muitas dúvidas sobre as reais motivações do crime: teria sido passional ou provocado por intrigas políticas? Algumas versões afirmam que Nenê era também amante de Washington Luís, ilustre político e um dos alvos da pena afiada de Piza. Quando escreveu a obra Roupa Suja: Polêmica Alegre, em que faz uma crítica direta às práticas da elite paulista da República Velha, o causídico também direciona várias críticas morais ao presidente do Estado de São Paulo, Washington Luís, denunciando o comportamento devasso do político. O livro não menciona explicitamente Nenê Romano, mas faz alusões à cortesã, insinuações veladas, que foram fortemente aceitas por pesquisadores.

Imagem por Wilfredor, CC0, via Wikimedia Commons
Ao expor segredos, práticas ilícitas e amizades duvidosas, a obra causou rupturas nas relações entre a elite política e Piza, que angariou inimigos poderosos. Mas há veracidade nessas acusações e insinuações? Muitas são boatos, relatos de bastidores, que corriam à boca miúda; não há documentação conclusiva para todas as afirmações atribuídas a Washington Luís ou a outros sobre as relações de caráter íntimo com a cortesã.
A ligação direta entre a obra e o assassinato de Nenê por Piza, seguido do suicídio do advogado, é tema de discussão entre historiadores – alguns consideram Roupa Suja um fator importante para o desencadeamento da tragédia, mas não necessariamente o determinante final.
O que realmente teria acontecido? E assim, tal como a escultura que guarda a última morada de Moacyr Toledo Piza, a história permanece sob uma interrogação. Teria sido um crime passional, motivado pela possessividade do eminente causídico, ou o peso das revelações de Roupa Suja o verdadeiro gatilho?
Na conclusão tendenciosa das autoridades – endossada pela opinião pública –, a culpa recaiu sobre Nenê Romano, descrita pelo Jornal O Combate como “flor da rua e da lama”, capaz de manipular e enfeitiçar com seus encantos mundanos um respeitado advogado.
Entre verdades e rumores, alguns são lembrados com glória; outros, com escárnio. Uns são reverenciados com sepulturas luxuosas; outros jazem sob lápides abandonadas. Os cemitérios das cidades são como livros: guardam histórias que o tempo não conseguiu enterrar.