Nada sobrevive em nosso mundo para além do bem e do mal

La Dolce Vita

Paulo Maia

O primeiro parágrafo da obra ‘Sobre verdade e mentira no sentido extramoral’ de 1873 de Friedrich Nietzsche, é um balde de água fria na cara de todo aquele que se julga ser de uma espécie que tem um significado especial na vida. Uma espécie que, por ter inventado o conhecimento, imagina estar acima de todas as outras coisas que existem e de todas as outras espécies no planeta em que vive:

No desvio de algum rincão do universo inundado pelo fogo de inumeráveis sistemas solares, houve uma vez um planeta no qual os animais inteligentes inventaram o conhecimento. Este foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da “história universal”, mas foi apenas um minuto. Depois de alguns suspiros da natureza, o planeta congelou-se e os animais inteligentes tiveram de morrer.

Nietzsche usa o artifício de uma fábula mais que possível para propor uma tese da relatividade do conhecimento humano e, em decorrência disso, a tese da indigência da pretensão e da nossa arrogância quando estamos movidos pelo “páthos” da verdade, ou seja, julgamos sermos nós, “dotados” da condição de poder conhecer o mundo de forma verdadeira e concreta, através dos mecanismos do intelecto. Não apenas conhecer o mundo, supomos também, governá-lo como queremos.

O Homem Vitruviano | Leonardo da Vinci, Public domain, via Wikimedia Commons

O texto é primoroso e traz redenção à condição humana, indicando que não precisamos carregar tal “responsabilidade” em relação não apenas à vida, mas ao universo.

Mas saber que não temos essa responsabilidade (como resultado do conhecimento produzido pelo intelecto) não resolve nosso problema da existência, nem como de como devemos levá-la em meio a tudo.

Sofremos por não sabermos direito o que fazemos aqui ao mesmo tempo em que instintos nos levam a nos mover em busca da sobrevivência. O que sentimos por experimentar a vida é instintivo e repousa em uma camada bem profunda em nosso ser a ponto de sequer nos perguntarmos, em um primeiro momento, o que vem a ser isso e por que sentimos o que sentimos.

Pela vida ser tão rara (até onde sabemos, apenas nesta rocha solitária em um vácuo gélido e silencioso), somos tomados por um orgulho desmedido em que nos sentimos poderosos.

Para o universo, como escreveu Nietzsche nesta fábula, a criação do conhecimento pelos animais “inteligentes” fora somente um ínfimo momento dentro do imenso período de seu tempo, o que nos faz crer o quão efêmero é o conhecimento humano se comparado ao tamanho do universo. A mísera duração desta criação, quando comparada com os milênios do universo, também mostra quanto é banal o intelecto do homem quando posto frente a frente com a natureza.

E mais: o conhecimento não tem absolutamente nenhuma serventia fora do âmbito humano. Ou seja, o universo não se importa conosco ou com o que fazemos; ele segue em sua cegueira contingente.

Segundo o filósofo, o intelecto é apenas um meio de afirmação dos mais fracos. É com o seu uso que os “menos robustos, se conservam”. É a parte não-física, imaterial que temos, que se expressa em reações químicas e elétricas em nosso cérebro que usamos para, além de sobreviver, criar um mundo mais adequado para podermos viver. Isso, se dúvida, vem mantendo acesa a chama de vaidade humana que administra o que vê como ‘verdade’.

Não apenas necessitamos do uso do intelecto para nossa sobrevivência, mas também para viver em sociedade, para pregar a paz, evitando assim a guerra de todos contra todos, um tratado de paz que é o primeiro passo para se encontrar a verdade. E assim, é possível contrastar ela contra a mentira, ou seja, a não-verdade.

Séculos antes de Nietzsche, o sofista grego Protágoras (Abdera, c. 490 a.C. – Sicília, c. 415 a.C.) já anunciava que “o homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são“, anunciando o relativismo da Verdade, ainda que este termo tenha sido cunhando séculos depois. Mas a verdade é aquela que você constrói, com sofismo.

O que depreendemos disso tudo? Ou melhor, o que raios, eu estou tentando dizer? Que o conhecimento é importante para nossa sobrevivência e que ele serve só para isso. Claro. Já é uma grande coisa para todos nós!

Porém, o conhecimento pode ser forte o suficiente para edificar uma cultura complexa e uma civilização avançada em termos de criar condições para dar longevidade à espécie, por exemplo, mas ao mesmo tempo, ele pode ser efêmero e levar à desordem e consequente destruição. O uso e interpretação dele como verdade ou mentira leva a caminhos diferentes e sempre relativizaremos seus resultados. Para o bem da nossa sobrevivência. Talvez a única e absoluta verdade de forma concreta.

A condição da espécie de se perpetuar, somente fora possível pela contínua produção de conhecimento e de repassá-lo para novas gerações através da cultura, a forma como expressamos o que “entendemos” das verdades e mentiras que criamos.

Pirâmides do Egito, Complexo de Gizé | Imagem por Osama Elsayed em Unsplash

Mas não nos deixemos cair na tentação de nos achar importantes em relação ao meio em que vivemos, à natureza. O futuro contará com ela e com todos seus elementos, que seguirão mudos e cegos pela infinito tempo que se moverá, sem a nossa presença.

A soberba pode nos deixar orgulhosos e arrogantes por acharmos que, sendo capaz de criar “conhecimento”, sou dotado de algum poder sobrenatural, considerando o fato de outras espécies não terem a mesma capacidade.

Podemos brincar de super-heróis e “inventarmos” um mundo em que só nós enxergamos. Mas uma coisa que aprendemos com o conhecimento que produzimos da experiência e na observação da vida, é que ela não ocorre fora da atmosfera terrestre. Até agora, pelo menos, não sabemos de nenhum outro lugar no Universo em que a vida pode acontecer. Somos uma parte do gigantesco ambiente e estrutura existencial dessa rocha que viaja no vácuo. Em nenhum outro lugar do universo, sobreviveríamos.

Não há bem ou mal, verdade ou mentira quando deixamos o ambiente humano e terrestre. A frase do seriado “Arquivo X”, indicando que a “verdade está lá fora” é equivocada. Lá fora, há apenas um mundo hostil à vida.

Mas somos diligentes: a teimosia pode fazer que saibamos, através do conhecimento, como construir um lugar só nosso no espaço ou habitar outro planeta por aí, nem que tenhamos que levar nossa meio ambiente junto. Da mesma forma que as primeiras formas de vida levaram água em seus ovos para suas crias quando elas decidiram sair do mar e avançar pela terra.

Paulo Maia é publicitário, um pensador livre e morador do Morumbi que mantém sua curiosidade sempre aguçada

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