Fogão a gás

“Era todo vermelho, um forno pequeno, os pés arrastavam arranhando o piso da cozinha e deixavam mamãe louca”

Ilustração cedida por Matheus Zucato

Por Matheus Zucato

Esta história não se passou comigo, mas sempre será minha, por escolha egoísta mesmo de quem recebe de herança um conto pessoal que torna viva a incorpórea presença do seu ator. A atriz, minha avó, de instransponível vivência, remediou a inquietude que originou a pergunta de caráter — ainda que acidental — tiranicamente exclusivo: “vó, me conta um acontecimento que marcou muito sua juventude”. Um nó atado na vida. Refleti apenas muito depois sobre a opressão que tal inocente questionamento pode causar sobre um ser humano, ainda mais os de longa data; pois quando se apela para o restrito número “um”, ele comprime os episódios que nos moldaram a vida, muitos deles experimentados durante a juventude. E é terrivelmente desolador ter que escolher dentre os filhos apenas um para amar. A maior parte das pessoas escolherá irremediavelmente os bons momentos que lhes encantaram o coração juvenil; mas como se pode com a consciência tranquila abandonar no alto mar de ferrugem as adagas que em nossas almas fundo perfuraram, e cujo resultado, depois de amadurecida cicatrização, é o edifício sólido de que somos feitos? É, portanto, um terrível questionamento que se pode fazer.

E se, ainda, numa demonstração de brandura face à minha ingênua rudez, como se faz com uma criança que pergunta num velório por que as pessoas morrem, minha avó tivesse escolhido em resposta a memória que me contou, só hoje, após a refletida análise, posso lhe agradecer. E o faço assim, textualmente, pois esta história, ainda que seja minha, não me diz respeito. Minha avó sempre me ensinou muito. Ela respondeu, depois de pensar um pouco: “ah, eu não sei, mas acho que… eu me lembro bem do dia que papai comprou um fogão a gás. Era todo vermelho, um forno pequeno, os pés arrastavam arranhando o piso da cozinha e deixavam mamãe louca. Mas nem ela ficou tão impressionada quanto eu quando comprovamos que o fogão novo não deixava preto o fundo das panelas; vivíamos acostumadas com a sujeira fumacenta do forno à lenha. Era tão mais fácil de limpar, depois. Ficamos encantadas.” E caímos em duplo silêncio: ela, sob o torpor da memória agradável, dava espaço à resposta, que não veio logo. Hoje temo que este tempo lhe tenha crescido demais num aparente, porém falso, desencanto; e, ao contrário, eu me encontrava cativado com tal singela recordação.

Imagem por KatarzynaBialasiewicz em Canva Fotos, customizada com Cartoon Photo Editor

No entanto, surpreendi-me quando ela continuou a contar: “quando seu avô chegava em casa como outro que não ele, equilibrando a casa torta, eu me lembrava das chamas claras do fogão da minha juventude. Era linda a cor vermelha. O rosto dele fervia. Também o meu, depois. Eu pensava que, pelo menos, no dia seguinte eu ia cozinhar sem esfumaçar as panelas. Nosso fogão também era a gás, mas eu fingia que cozinhava naquele da mamãe. E aí, enquanto ele se curava das curvas da vida, eu me firmava no cozimento limpo dos dias claros. Era de noite que a lenha queimava.”

O entorpecimento me afligia, gelado. Não era, vejo hoje, digno daquela sensação colérica, visto que nem minha avó se lembrava abrasada daqueles tempos de antes da viuvez. Aquietei-me a ouvir, num olhar que a indagava a prosseguir. Acho que ela entendeu, pois procedeu: “ah, não, não tem muito mais. Eu já estou contando causo além da conta. Não fique amuado, nem nada, porque no outro dia estava bem. Mesa cheia e panela limpa. Hoje, passou.”

Depois, nos separamos. Minha avó ficou na cozinha e eu sumi de mim mesmo, numa espécie de culpa arrastada. Daquele dia não me lembro de nada, só de minha avó na cozinha, a conversar comigo em frente ao fogão do qual não posso me recordar a verdadeira cor, mas que em minha memória se impregnou escarlate. À tarde, passei novamente em sua casa, com a desculpa de tomar um café vigilante; precisava certificar-me. Em verdade, precisava mesmo aliviar o peso que sentia desde a manhã, da crueldade que lhe havia praticado. Certamente, minha avó já havia tido — e vencido — sua fatia da crueza do mundo. Tinha terminado o café, quando ela retomou nossa conversa de antes como se não houvesse se entreposto entre nós, até então, tempo e distância quaisquer. “Ainda sobre aquilo que você perguntou”, ela disse, “é engraçado como aquela cor ficou marcada na minha cabeça. Um vermelhão realçado, mais bonito que batom e esmalte, e embelezava inclusive os outros móveis da cozinha. As paredes eram de azulejo azul claro, cor do céu de clarinho; acho que você não chegou a visitar a casa da sua bisa assim, né? Hoje está tudo reformado lá. A mulher que alugou, pediu. Mas era bonita, eu me lembro como se fosse ontem, mesmo sendo mocinha, na época. Era simples de tudo, mas o brinco era o fogãozinho a gás”. Fez uma pausa, e progrediu: “depois, quando seu avô morreu, me vinha aquele tempo bom em que a gente nem sabia o que era paixão. Vinha a memória do fogão vermelhinho dar remédio de esquecimento. Foi nessa época que eu tentei comprar da sua bisa o fogão antigo, mas ela disse que já o tinha vendido ao ferro-velho e que tinha comprado um novo com o que somou da aposentadoria. Então ficam só as lembranças dele…”

Imagem por hamik em Canva Fotos, customizada com Cartoon Photo Editor

Termino por aqui este vigoroso relato de vida que ainda hoje não descarregou de meus ombros a culpa em sua totalidade. Diante da última frase que me lembro daquela conversa poética, simbólica, neste exato ponto minha mente se rendeu e decidiu encerrar o registro. Daquele dia, não me surge mais nada, mas me sobressai a delicada sensação de que, amparado, eu dava meus primeiros passos rumo à sobriedade da vida.

De Minas Gerais, Matheus Zucato é autor dos livros “Os Dois Fazendeiros” (Autografia, 2018), e “Realidades Rompidas” (Edição do autor, 2021). Participante em algumas antologias de contos e cronista mensal em jornais de São Paulo e Minas Gerais, desde 2018. Foi vencedor do I Concurso de Contos de Iguaba Grande (AACLIG – RJ) em 2019, recebeu menção honrosa no VIII Concurso Literário da Academia Penedense de Letras (APLACC – AL) em 2022, e foi segundo lugar no VII Concurso Literário da Academia Leopoldinense de Letras (ALLA – MG) também em 2022

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